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Você está em Leitura por temas » Tema O - História de Ö, nascida e nascida [O6]
Beija-me. Seus olhos nadam e mergulham nos meus. Caçadores de ostras. Mergulham fundo nos olhos da minha juventude, nos da maturidade, passam de uns a outros e com duas bocas beijo-o, com duas línguas sugo a sua língua, duas vezes desejo-o, eu e eu.
Pus de lado o velocípede, que enfeitei com fitas coloridas: pendem do guidom e enlaçam os raios das três rodas. Estou no terraço do edifício, estendida junto à caixa dágua. Ninguém me vê abrir a porta do apartamento, tomar o elevador, descer no último andar, puxar escada acima o velocípede, deitar-me no cimento áspero, ao sol.
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Cobre-me um céu de luminosas nuvens brancas. Uma ave, bem no alto, faz evoluções. Voa tão longe que por vezes torna-se invisível, perdida entre as nuvens e o azul fulgurante.
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Com os lábios, de leve, Abel aflora meu rosto, a penugem do meu rosto, contorna a linha das fontes, desliza pela face, busca-me a curva do queixo, sua respiração dobra-me os ossos, movo rápida a cabeça, mordo a sua boca.
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A ave solitária cresce e cada vez perco-a menos de vista. Custo a perceber que as suas evoluções são rigorosas. Voa com disciplina, traça uma espiral descendente, que se reduz em direção a um vértice. Esse vértice funde-se com o ponto em que estou deitada, vejo isto com clareza, como se a noção de cone me fosse familiar, funde-se comigo o vértice do cone, o fundo da espiral e pela primeira vez sinto a distância entre mim e as coisas. Ao mesmo tempo, contenho um sobressalto: aquele vôo talvez seja o meu nome. A ave ainda está longe, posso ver que é negra, a cabeça vermelha, mas não ouço baterem as suas asas e ainda está longe quando sinto, no centro do meu corpo, o ponto. Na cicatriz do ventre. Não é uma dor. É um ponto, sim, um ponto, o início de um ruído, como se ali um pequeno cálice vibrasse. Fecho os olhos, cruzo as mãos sobre o peito, ouço o rumor das asas, asas imensas, sinto deslocar-se o vento em torno do meu corpo, voarem minha saia curta e meus cabelos, sucede-se um silêncio, eu abro os olhos, nenhuma ave me contempla ou voa, nenhum vestígio de vento, nenhum vestígio.
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Duas pequenas borboletas negras, pousadas no guidom do velocípede, abrem e fecham as asas. Começo a rir e as borboletas voam. Rolo no cimento, rindo, duas garras me prendem pelos ombros, erguem-me, grito de terror e logo de alegria. Minha mãe, chorando, leva-me de volta.
Solta Abel as presilhas da meia e desnuda-me, paciente, a perna direita. Apóio em seu joelho o pé esquerdo, tiro devagar a outra meia, jogo-a rindo no seu rosto.
Bate o relógio algumas pancadas, trecho incompleto da frase musical que dizem só de tempos em tempos pode ser ouvida.
Ponho um disco na vitrola: Catulli Carmina. A penumbra da sala parece iluminar-se com a entrada imediata do coro. Eis aiona! Eis aiona! tui sumo
Nos pés descalços sinto os fios dos tapetes, os fios, poderia dizer que sinto os seus desenhos, cores, flores, motivos geométricos.
Eis aiona! (Sempre) eternamente, sempre, a ti pertenço. Tui sumo Caminho para ele. Sem dar tempo a que me aproxime, levanta-se, avança para mim, abraça-me. Seus joelhos dobram-se, abraçado a mim ele tomba devagar, abraçado a mim, ajoelha-se, beija-me o vestido à altura do sexo, também as minhas pernas cedem, pesadas, ficamos de joelhos um em frente do outro, presos pelas mãos, outra vez nos abraçamos,
outra vez, tombamos no tapete.