UMA REDE NO AR - Os fios invisíveis da opressão em Avalovara, de Osman Lins

Leitura por Temas: O ROMANCE Avalovara é estruturado em oito temas, indicados pelas letras R, S, A, O, T, P, E, N, cuja origem é o palíndromo SATOR AREPO TENET OPERA ROTAS. Cada uma das letras é acompanhada de um título. A disposição dos oito títulos obedece à ordem da inscrição das letras no quadrado, conforme a incidência da espiral que lhe é superposta, gerando uma estrutura não seqüencial.

No agrupamento por temas, desconstruímos o entrelaçamento dos temas e os dispomos em ordem seqüencial, tema por tema, formando oito unidades, cada uma com seu desenvolvimento contínuo. Isso possibilita um tipo de leitura seletiva, já previsto pelo próprio autor.

Imprimir tudo    Voltar

Você está em Leitura por temas » Tema O - História de Ö, nascida e nascida [O4]

No breve salto, neste espaço de relâmpago em que o peixe voa e vê as cabras mordendo as pedras das ilhas, neste salto breve nos confunde a luz das interrogações, que não são poucas. Emergimos do mar para indagar, Abel. Quem fez meu corpo? Observo meus pais, demoradamente, compara-os entre si, comparo-os comigo e vejo: não foram eles. Tão de longe vem meu corpo que eles esqueceram o que significa. Transmitem-no como um texto de dez mil anos, reescrito inumeráveis vezes, reescrito, apagado, perdido, evocado, novamente escrito e reescrito, uma oração clara, antes familiar, tomada enigmática à medida que transita, em silêncio, de um ventre para outro, enquanto a língua original se desvanece. E de falar, quem foi meu mestre? Ouço meus pais falarem, falam entre si com surda, amável, clara violência e sei que não eles me ensinaram a falar. Aos nove anos de idade, ainda não falo. Não sinto a voz em mim. Pareço um cão humano ou uma possessa infantil, uma criança carregando em si o demônio da compreensão e da mudez. Tudo ouço – ventar, baterem as portas, risos, jato das torneiras, ordens, pulsar o coração, veículos na rua, pássaros cantando - tudo ouço, mas não me aventuro a repetir esses sons e tudo para mim é indecifrado. As palavras sobressaem-se do meio dos ruídos, mas tão-só como fios de outra substância em um novelo inextricável. Distingo-as, nem sempre com muita nitidez. Há um casal de crianças maiores do que eu e semelhantes a mim. Ferem-me com alfinetes, jogam sal nos meus olhos, molham minha roupa de dormir, batem-me na cabeça. Sei que haverá um código, um sinal para chamar-me. Procuro descobri-lo no confuso ir e vir das coisas que me cercam. Será um som, será um odor, será uma cor, uma claridade? Por vezes, percutem um martelo, ou me deparo com a fachada de um prédio, ou vejo desenhos num muro, ou cravo as unhas na pele. Fico perguntando se alguma dessas coisas é meu nome: o soar do martelo, a parede brilhando, os riscos no cimento, a dor que sinto. Assim vivo, nesta comunhão que me multiplica e atormenta, assim vivo, até precipitar-me para baixo no meu velocípede, eu e o mundo, eu e as três rodas que giram em derredor de mim, e tudo escurece e nessa escuridão eu sou novamente formulada, eu, novamente sou parida, sim, nasço outra vez.

© Copyright 2012 - UMA REDE NO AR :: Os Fios Invisíveis da Opressão em Avalovara, de Osman Lins. All rights reserved.

Centro Universitário Ritter dos Reis - Rua Orfanatrófio, 555 - Cep: 90840-440 - Porto Alegre/RS - Brasil | Telefone: +55 (51) 3230.3333