UMA REDE NO AR - Os fios invisíveis da opressão em Avalovara, de Osman Lins

Leitura por Temas: O ROMANCE Avalovara é estruturado em oito temas, indicados pelas letras R, S, A, O, T, P, E, N, cuja origem é o palíndromo SATOR AREPO TENET OPERA ROTAS. Cada uma das letras é acompanhada de um título. A disposição dos oito títulos obedece à ordem da inscrição das letras no quadrado, conforme a incidência da espiral que lhe é superposta, gerando uma estrutura não seqüencial.

No agrupamento por temas, desconstruímos o entrelaçamento dos temas e os dispomos em ordem seqüencial, tema por tema, formando oito unidades, cada uma com seu desenvolvimento contínuo. Isso possibilita um tipo de leitura seletiva, já previsto pelo próprio autor.

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Você está em Leitura por temas » Tema O - História de Ö, nascida e nascida [O19]

Doze anos, seis meses e dois dias. O tempo, a vida, os acontecimentos - salas fenestradas. Em todas as paredes, janelas abertas, e as janelas olham para outras salas rodeadas de janelas através das quais vêem-se as janelas de novas e estranhas salas, e tão numerosas são as salas que cada uma é o centro das demais. Neste centro móvel, impreciso, com idades que não são nenhuma idade definida e dois pares de olhos que escrutam como se fossem um só par ou mesmo um olho, neste centro, sondando, através de todas as janelas, as janelas próximas, eu, inserida num jogo de espelhos arbitrários e onde as iterações, por incontáveis, tendem para o esférico, vejo-me, vejo os demais e também vejo a mim mesma no ato de me ver e de ver os que me cercam. Vejo-me, vejo os demais e os variados cenários em que nos movemos. Todos. Todos os cenários. Todos nós. Um par de olhos vê por dentro do outro par: é como se fossem de outra substância, são olhos mais tenros, mais inocentes que os olhos mais velhos. Assim, este mundo de janelas abertas sobre inumeráveis segmentos do fluir das coisas e que, por numerosas, evocam a forma esférica, duplica-se, refratado por meu duplo olhar. Duas dilatáveis esferas de salões rodeados de janelas, uns trespassados nos outros, ressoantes, ressoantes dos meus passos, de vozes perdidas, ressoantes também dos meus silêncios e não circunscritos a esses doze anos, seis meses e dois dias: toda a minha existência aí está - e aquele centro móvel, fugidio, que transita de uma sala a outra, como se fosse o centro de gravidade do tempo, é uma das formas - uma forma concreta - do presente, do inapreensível agora. Eu tentando ler meu nome no bater de um martelo e eu diante de Inês, perplexa, ciente de que os seus modos e palavras têm algo de novo, mas não sabendo em que consiste o novo e quais seus frutos, eu apertando o gatilho; na boca um gosto de sangue - tarde de - o gatilho do revólver agosto? alameda Franca? eu? uma escolar temerosa o braço erguido sustendo. Malmequeres desbotados em um velho pedaço: de jornal o céu da madrugada empalidece (ouço o mar percutindo na amurada) e eu com este homem ( ) nus ( ) os joelhos no assoalho enquanto ele pergunta: repetindo, as palavras ouvidas de outra boca em outra hora cingindo; com tal força meu pulso; que a mão fica dormente o que será? de nós? e eu respondo e soluço como se na verdade fosse o pranto a única. Resposta viável. Minha avó com sessenta e oito anos com setenta Olavo Hayano e eu o enterro da negra com setenta e cinco o incêndio do prédio em construção frente ao Martinelli. (Eu.) Visitando meus pais o enterro da negra através da cidade Inácio Gabriel na praça da República um frio entardecer em fins, de junho minha avó, setenta e nove oitenta, outras idades o sol; das onze horas eu; com Inácio nós eu & ele olhando os gansos que deslizam no lago não apenas. Com essas várias idades. Dirigindo-se ao marido a mão direita voltada para mim, não, contra mim, meu avô na sua escrivaninha amontoada de autos sob a luz, do abajur, ele em seu leito de morte numa gaveta qualquer a dentadura, um, abajur de metal a menina às suas costas / ocupa a poltrona de couro e olha os dísticos / dourados, dos livros, nas estantes e - no quarto - de Inês mais alta agora que Inês na mão uma tesoura de costura segurando a tesoura pela ponta ofereço-a a Inês num gesto instigador o rosto duro. Uma? Pedra. A serpente mordendo-me as costelas. Nesta sala: deitada no tapete, a perna direita flexionada e a coxa repousando sobre o flanco de Abel: em outra sala, escura, eu ainda, um ser escuro, olhando para as salas contíguas, umas iluminadas, outras não, eu - velha?, matura? -, pensando sombras, agindo. Meu ato: uma sombra. Com o tremor das mãos, devo ter arranhado a outra face do disco, um choque rítmico e desagradável fere as melodiosas vozes dos cantores. As rodas dos automóveis, na avenida, deslizam e freiam, as rodas, rente a meus pés; o rumor da serra numa construção, agudo, atravessa meu corpo; mal vejo minhas mãos, os olhos turvos. Eu na sala, de pé, curvada sobre o disco em movimento. Um choque rítmico. O rastejar no tapete e os repetidos beijos em torno dos meus pés, tiros que por pouco errassem o alvo. Distingo, nas vozes dos cantores, as palavras aeternum, vita e amicitiae. Abel beija-me os pés. Meu avô recusa-se a ter rugas como magistrado; ponto de honra, para ele, estar em dia com as leis e a jurisprudência. Ao mesmo tempo, receia que se altere a concepção de justiça que possui quando ingressa na magistratura. Este desejo de coerência, convertido em dogma, transforma numa selva de sofismas sua atividade na Justiça. Exibe-me os extensos fichários, acumulados em quase três decênios de serviços prestados. A quem? Sua voz pausada, segura, na qual é possível captar, afiando o ouvido, um susto: "Ninguém pode surpreender-me numa incongruência. (Sinto que a incongruência está nos seus calcanhares, dorme com ele e se imiscui nos seus bolsos.) Desafio seja quem for a encontrar, dentre todos os meus pareceres, um só que contradiga outro. Um só." Classifica as causas por assuntos. Organizar as suas fichas consome ainda mais tempo que o destinado a armar os pareceres, mas o fichário - Arca da Eqüidade e da Justiça - presta o serviço para o qual existe: meu avô, antes de opinar, e mesmo antes de formar um juízo sobre os processos que chegam às suas mãos, revê atento os pareceres antigos. "A habilidade consiste em manejar a jurisprudência. Uma de suas funções é dar solidez aos nossos pressupostos. Isto porque um magistrado não muda. Um magistrado não tem direito a ter duas opiniões, nem que viva mil anos. Caso contrário, não merece o cargo”. Inconcebível para ele que o tempo ou os acontecimentos possam de algum modo alterar, aos setenta e três anos, urn juízo exarado por volta do seu 48º aniversário. Um parecer do avô, ancião exemplar, é um coágulo. Junho de 33: indignado, desenvolve uma rama de argumentos e pede a pena máxima para um carpinteiro que, ludibriado, assassina o patrão a golpes de martelo; setembro de 56: sugere igual castigo para um crime idêntico, daí recuando para as suas razões, e das razões chegando a indignação, por tal modo que tudo se complete e ele durma em sossego. Um grande homem, ouço muitas vezes, na sala transformada em câmara-ardente, enquanto transito entre varões de ar oficial e mulheres altaneiras. Um grande homem, tal como exige um mundo também morto. Lentamente, levanto o pé esquerdo, Abel toma-o entre as mãos e beija a planta, beija o calcanhar e o tornozelo, trinta, quarenta vezes me beija os músculos da perna, vai erguendo-se aos poucos, beija-me os côncavos do jarrete, eu toco novamente o soalho com o pé que está erguido, ele beija-me o joelho, eu me volto para ele e o seu rosto sobe entre minhas coxas muito unidas, ouço o ruído abstrato dos seus beijos, rnas ele já não beija a minha pele, beija o espaço entre as coxas, de joelhos, enquanto com mãos leves acompanha, por trás, o contorno das pernas, o redondo das nádegas, modela-me os quadris, com leves mãos. Talvez haja nascido comigo, e renascido, uma serpente - Ira. Envenena a imagem do meu pai, da minha mãe (são realmente meus pais?, nós temos pais?), debate-se contra as paredes forradas de papel marrom, contra as flores encardidas das paredes entre as quais passo uma infância e inicio outra, contra, morde o mundo. Trago esta serpente em mim, enroscada nas costelas e não me abalo a escondê-la: suas escamas, por vezes, despontam em minhas unhas, por vezes seu corpo contráctil me enche a boca e eu cuspo-o, enrola-se no meu pescoço e espreita serpente por cima de meus ombros — direito ou esquerdo — os que são dóceis e tudo aceitam sem queixa. Voa Inês sobre as coisas, voa entre mim e as coisas, e distrai este réptil, adormece-o. Experimentando, através de nomes sempre substituídos e nunca repetidos, ingressar no meu ser e conhecê-lo, tece-me nas coisas, no dia a dia da casa, na temperatura das salas e em tudo que esta ilha amena contém e irradia. Uma encantadora de serpentes. Ainda que, após submeter-me, este mundo farto me recuse, aprendo a vê-lo como irrecusável. Ira, nédia, cordata, enrosca-se entre minhas vísceras. Adormece. Seu longo sono exala um odor de jasmins. Perdem-se, à deriva, no espaço ou no tempo, as peças da imensa máquina noturna. A primeira aceitação é todas? Aceito o quarto, a casa, o jardirn, o portão, aceito a rua, rendo-me, esqueço a máquina (testemunho, quando vou ao Martinelli, sua lenta deterioração, semelhante a uma esquadra suspensa que se dispersasse), volto minha espádua a parte negra e desvalida do mundo. Cada vez minha ida à casa dos meus pais é menos espontânea e cada vez os corredores à deriva do prédio me parecem mais longos, mais escuros. Um favo que se rompe, um figo muito doce que se abre - e o mel escorre-me entre as coxas. Ele beija-me os pêlos. Desperto no silêncio da noite; voz alguma, débil que seja, escuto no meu corpo, vagando. Alguns beijos, por entre a massa espessa dos meus pêlos, ferem-me a carne, ferem-me o sexo, abrem-se as veias, parecem muitas e grossas para o sangue que foge. A desagregação da máquina. As palavras se extraviam por suas aberturas e vãos. A espaços, a espaços, ainda reencontro em mim as vozes. Os beijos ferem-me a came, susto a respiração, prendo entre as mãos sua cabeça e vejo que não pesa. Aeternum, vita, amicitiae. Meu pai numa poltrona, as pernas sobre almofadas, ainda não refeito das incrustações: placas de metal nas tíbias. A corneta de chifre pende do pescoço, ele evita responder as perguntas que lhe faço. Ambas as orelhas de borracha — o giro das espadas. No sofá, minha mãe e um casal de crianças. Ela faz-me perguntas invejosas; não é para que eu seja aceita e ela mesma permaneça excluída que me leva a missa fúnebre da irmã. As crianças cortam em pedacinhos, com tesouras, uma velha camisa de meu pai. Parecem-se comigo e têm o olhar maligno. Com aversão, com ódio, logo com horror, ouço-as conversarem e trocarem sorrisos cheios de malícia. A serpente agita a língua em algum ponto secreto do meu corpo. São estes, estes, este menino e sua irmã, são estes que me salgam os olhos e me furam com alfinetes nos dias em que vou de um quarto a outro interrogando-me sobre o meu próprio nome e flutuando num mundo inconsistente. São estes? Então cabe-me a vez de torturá-los.

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