UMA REDE NO AR - Os fios invisíveis da opressão em Avalovara, de Osman Lins
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Leitura por Temas: O ROMANCE Avalovara é estruturado em oito
temas, indicados pelas letras
R, S, A, O, T, P, E, N, cuja origem é o palíndromo SATOR AREPO TENET OPERA
ROTAS. Cada uma das letras é acompanhada de um título. A disposição dos oito
títulos obedece à ordem da inscrição das letras no quadrado, conforme a incidência
da espiral que lhe é superposta, gerando uma estrutura não seqüencial.
No agrupamento por temas, desconstruímos o entrelaçamento dos temas e os dispomos
em ordem seqüencial, tema por tema, formando oito unidades, cada uma com seu
desenvolvimento contínuo. Isso possibilita um tipo de leitura seletiva, já previsto
pelo próprio autor.
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Você está em Leitura por temas » Tema O - História de Ö, nascida e nascida [O23]
Ouço, ante a janela aberta, o mar nas pedras próximas? Uma criança, em pranto, cruzou com leves sapatos o mal iluminado corredor do hotel? Respiro o ar imóvel? Fala a alguém, em algum quarto próximo, turbada pelas ondas, uma voz de homem? Tem resposta? Minha grinalda pende de um cabide alto. Itanhaém é o nome da cidade e tudo surge - tudo: paredes, móveis, vestes, movimentos, sons - nas inumeráveis palavras com que narro, horas e horas, até perder a voz e continuar a falar dentro de mim, as minhas próprias núpcias e tantos outros eventos, sem perceber sempre o nexo do meu discurso. De um modo convulso, aos saltos, descrevo o progresso diário e insensato do meu amor sem amor.
Meus sentimentos e atos são os de quem ama? Contudo este amor é enganoso, um sortilégio. Descrevo-o e descrevo os ofuscantes dias em que me faço de alheia ante o mecanismo há muito destinado a mim,
descrevo o apartamento da Avenida Angélica onde vive Hayano com seus pais, os tapetes encardidos, as poltronas de damasco alterado pelo uso, a prataria,
o relógio de Julius Heckethorn,
toda uma série de elementos cênicos reveladores de vida abundante em fase de declínio, descrevo os cerimoniosos chás, o pai de Hayano, alto, o queixo de mula, sentando-se em diagonal por causa das dores constantes na coluna e fechando os olhos para degustar a infusão, Bilia, baixa e compacta, não é tao gorda ainda quando a vejo atravessar sob a chuva o jardim ao lado do filho em uniforme da Academia Militar, Bilia, cabelos aparados sobre a nuca vermelha, ingerindo sem pausa chocolates e doces, pouco a vontade - vê-se - na poltrona (vive sempre deitada em camas ou sofás), olha vez por outra para o filho através dos olhos apertados, com uma expressão relutante, mas louvando-o, exaltando-o, ele há de obter as graduações mais elevadas, todos hão de ver isto, descrevo a sua voz, rolando na garganta entre paredes espessas de gordura, seu riso vindo do esôfago sem que um traço do rosto embotado pela enxúndia se altere, descrevo o ar de realização de Hayano, a serenidade com que ouve as palavras opressas de Bilia, é evidente a confiança dele nas promoções com tanta insistência e firmeza anunciadas, afligem-no apenas o zumbir nos ouvidos e os sonhos de que sempre se queixa, únicos de que se lembra, onde só os mortos aparecem, raivosos, em mil situações, isto e nada mais torna-o apreensivo, eu descrevo os zumbidos e os mortos raivosos que se debatem nesses pesadelos,
descrevo Natividade, curtindo o resto da vida num asilo pago por Olavo Hayano e repetindo a propósito de nada “Eu criei esse menino”, descrevo a cara negra, o olhar perdido, as mãos sem força, o riso que parece derramar-se em contas pelo colo, descrevo nossas mecânicas visitas certas tardes de sábado ao asilo, no Jacana, descrevo rapidamente as enfermeiras, as serventes, a companheira de quarto de Natividade, mais avançada em anos que Natividade, olhos de menina, tornozelos finos, laço na cabeça, vestido de ramagens, de ramagens azuis, sempre cantando e dançando a tarantela (um modo de evocar alegres e distantes manhãs napolitanas), descrevo a escultura colorida no jardim do asilo, em tamanho natural, representando um homem de guarda-chuva aberto, sai água da ponteira e desce pelas hastes, o guarda-chuva de zinco produz a sua própria chuva, chove sobre esse boneco enquanto os asilados passeiam no jardim, ao sol, descrevo nossa ida ao asilo antes do casamento, para que Natividade veja meu vestido e veja Hayano em uniforme de gala, há um silêncio entre os velhos quando eu chego, de branco, a cauda longa, as flores, a água cai do guarda-chuva pardo, Natividade abraça-me, sua amiga dança a tarantela, os velhos seguem-me através do jardim, cruzamos de automóvel esse bairro poeirento, com suas serrarias, seu tráfego pesado, seus depósitos de cal e suas casas de paredes sujas,
um menino perturba o silêncio da capela na tarde quente e opressiva
, eu descrevo a chuva repentina, ventos inconstantes agitam os dois ciprestes que ladeiam o portão alto da Marquez de Ytu, eis-me despindo o vestido de noiva e jogando-o sobre esta poltrona em um dos quartos nos quais nunca se entra (as revistas européias de 1912 e os frascos de perfume que só recendem a passado), descrevo a viagem de automóvel, e o desalento e a cólera de Hayano quando constata as precárias condições do hotel em que se vê constrangido a pernoitar, ainda não existem os alicerces do hotel quando o descrevo,
mas tudo corresponde a minha descrição, o colchão com suas molas frouxas, a lâmpada pendendo de um fio sobre a cama de espaldar alo, o estuque áspero, as paredes róseas, o abajur de cabeceira com pequenas flores na cúpula amarela, o toucador com três espelhos ovais, as cortinas cinza com desenhos em laranja e negro, os descorados tapetes sobre a madeira brilhante do assoalho, o alto cabide com a grinalda num gancho, uma criança chorando através do corredor não muito iluminado e eu própria de pé frente a janela aberta, escutando o mar bater nas pedras próximas e respirando este ar, este ar imóvel como pedra.
Sentada ante os espelhos, no toucador, ponho a grinalda e examino-me. Vinte e três anos e quatorze anos, eu e eu, fundidas no reflexo, serena e aterrada, penteando os cabelos piatinados e ruivos, os cabelos abundantes, soltos sob a grinalda, eu, em rosto dos espelhos, cabelos, carne e vestes não cabendo nos ovais dos vidros, meus olhos cor de folha seca e com um ar de armadilha olham com força dupla a imagem antígua (pode-se crer que se move sob a lâmpada o modelo de um postal anterior a Primeira Grande Guerra, com seus braços carnosos, fronte estreita e claro rosto sombrio), meus lábios salientes seriam iguais aos de uma negra se demarcados com menos nitidez e meus peitos bojudos sob as roupas amplas, guarnecidas de arminho, franjas, passamanes, folhas, rubãs, rendas e laços, exalam um odor fresco de jasmins - o odor que desprende Ira em repouso - e não sei também se de cartões-postais roídos pelas traças.
Hayano entra no quarto, aproxima-se de mim e tira-me a grinalda. Eu o desejo, é um desejo ácido, com gosto de vinagre, ardo de desejo e ardo de pavor:
queria fugir, mas quero ficar, fico (o pacto firmado na noite em que luto e luto no chão, luto, até que surge a manhã, estabelece: seremos uma e uma, uma, para tudo o que vier, somos uma, sou uma),
ele me inclina sobre os lençóis, o abajur ao lado da cama está aceso, a lâmpada pendente de um fio está acesa e se refiete no espelho oval do centro, com qualquer coisa de meticuloso nos gestos Hayano despe-me a camisa rendada, cai sobre mim, frases ditas por um homem ecoam em algum quarto próximo, Hayano rompe-me o hímen, os hímens, o lustre sobre nós, cristais e objetos de prata oxidando-se aos poucos na penumbra, as palavras do homem ecoam sem resposta, presa entre os braços de Hayano eu me debato, de prazer e de horror eu me debato, ele conhece-me, estupra-me, grito de ebriez, choro de medo. Fere-me o sexo de Hayano, duas vezes me rasga, gélido,
e então eu sinto o Avalovara, o pássaro, deixado em mim pela passagem de Inácio, dobrar-se sobre si, transido, como se a fria glande de Hayano fosse a vinda de um inverno rigoroso e súbito: a ave perde o bico e a voz, reduz-se a um esqueleto, gravado em mim como na pedra o esqueleto de um fóssil - sem a voz, sem a plumagem.
Passa um grupo de bêbados, em alguma rua próxima ao hotel. Cantam, pastosamente, versos esparsos de carnavais antigos. Que horas serão? Três? Olavo Hayano acende a lamparina dentro do copo vermelho. O abajur e a lâmpada no fio continuam acesos, ele observa minha nudez. Com um punho fechado sobre os olhos, deixo que o faça e não procuro cobrir-me. Senti prazer? Sim, mas ignoro se este é realmente o que se deve sentir. Ele se debruça e beija-me no rosto. Abro todos os meus olhos, flores carnívoras, fito-o, olhos abertos. Por que é gélida a extremidade do seu sexo? Sorrateiro, estende a mão esquerda para o abajur. Com um dos seus gestos inesperados e rápidos, faz incidir a luz sobre meu rosto. Dou um golpe na lâmpada, voa a lâmpada e tomba no tapete, Hayano segura-me pelos cabelos e tenta ver o fundo dos meus olhos. Lutamos sobre a cama. Para quê? Desisto de esquivar-me, de esquivar o rosto, os olhos, e afronto-o, as pálpebras abertas, todas, para que ele veja - e ele vê, e grita que eu tenho quatro olhos nas órbitas, uns por dentro dos outros,
marcha o relógio de Julius Heckethorn, um trovão à direita, outro à esquerda, explosões distantes e espaçadas, sua voz monótona revela acusação e menosprezo. Que olhos são estes? Como nunca os viu?
Com lentidão estudada, cerro sob seus olhos as pálpebras mais novas. Quer ver apenas o olhar que todos trazem, o olhar que o vê sem o relevo e a cor com que ele deve ser visto? Que o veja. Fita-me ainda um instante, solta-me, apanha no chão o abajur apagado, apaga a lâmpada do teto e pede-me perdão, deita-se. Fica no quarto apenas a luz da lamparina.
Ele adormece, mas para mim não vem o sono. Assim é, digo a mim mesma. Exatamente. A luz da lamparina: estuque, paredes, cortina, seu rosto, o espelho. Terão os homens, todos, a glande fria? Ele ressona, inquieto. Faz calor.
Levanto-me e abro mais a cortina; falta-me o ar. Hayano mexe-se. Atravesso o quarto, nua, abro o guarda-roupa, procuro uma camisa sem tantos enfeites. Dou com a vista num coldre. Vazio? Debruço-me, sopeso-o: contérn uma pistola e cheira a cavalo. Dói-me o baixo ventre, eu sinto-me estuprada, tiro a arma do estojo e aponto-a para o vulto debruçado no leito. Existe uma pistola? Então nada falta - constato. Acrescento que a hora se aproxima. Guardo a arma no coldre e a ponho no lugar, no mesmo, de onde a retiro. Contudo, não troco de camisa: visto, com movimentos medidos, a que tenciono substituir. Deito-me, fecho os olhos, ouço-o murmurar. E quando sopra o vento, tão fresco o vento que eu estremeço e me cubro. Adormeço.
De súbito, abro os olhos: o vento deve ter apagado a lamparina. De costas para o homem, nada vejo e quero - é um desejo exigente - saber que horas são. A noite me parece longa, tenho a impressão de haver dormido dias e dias seguidos. Tento ligar em vão a lârnpada do abajur. Falta luz no Hotel? Na cidade inteira? Além do mar e das ondas quebrando-se nas pedras, nada ouço. No quarto, há um halo remoto - talvez a luz das estrelas - e a temperatura está mais baixa. Levanto-me para fechar a persiana e a cortina. Neste momento, a luz de um projetor varre as paredes. Aproveito para olhar o relógio: são quatro horas e dois minutos. Vêm as luzes de um navio fundeado ao largo como que extraviado no tempo e é impossível imaginar por que seus projetores falam a cidade a essa hora da noite. Cruzo os braços por causa da frieza, volto-me para o homem adormecido. Ele ressona e eu vejo-o de face. As luzes dos refletores acendem-se e apagam-se, rápidas. Uma mensagem? Para quem? Mensagem ou não, esse piscar me aturde. Falta alguma coisa em tudo isto, neste quarto em que respiro com a boca aberta, neste minuto que vivo, um elemento discordante aqui, isto eu afianço. Digo a mim mesma, apesar de tudo: “E agora.” Mas o que é agora? Não sei.
Contudo, sei. Distingo mal, é certo, na emaranhada rede desta hora, as razões de tudo, conquanto saiba que ela constitua um resultado, a resposta a um cálculo: outras horas, inúmeras, encontram-se e ressoam aqui. As cerimônias, previsíveis que são na seqüência e no ritmo, simulam um domínio sobre o futuro (ou do que tem esse nome de futuro). Meus gestos e as circunstâncias que os cercam lembram um cerimonial. Como um autômato, volto ao guarda-roupa, abro a porta e curvo-me. Um cão ladra e responde. As luzes do navio latejam nas paredes, mais rápidas que antes. Tiro a pistola do coldre, volto a fechar a porta, retrocedo alguns passos, fico no centro do quarto. Que dizem os projetores?...Entra e sai da penumbra o perfil de Olavo Hayano. Dou volta à fechadura, cruzo a porta que abre para o corredor. Insegura, distancio-me. Algo, na cena, reflete um determinado rnomento da minha vida e eu tenho clara consciência disto. Bate uma porta, longe. Estouram as ondas contra as pedras. Volto ao quarto e deixo a porta aberta. A outra, em outro andar, continua a bater. Sento-me ante os espelhos ovais do toucador. O cão late ainda. Os projetores do navio não cessam de pulsar. Meu rosto e meu vestido — o busto alto, as rendas, braço direito, olhos, os cabelos caindo sobre os ombros - surgem e desaparecem, triplicados. Eu abro o colo, apalpo a carne do peito e volto sobre mim o cano da pistola. A explosão ressoa como no fundo de uma cisterna.
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