UMA REDE NO AR - Os fios invisíveis da opressão em Avalovara, de Osman Lins

Leitura por rotas: são incursões no romance, mediadas pela leitura dos pesquisadores e concretizadas no dispositivo hipertextual criado. As rotas estruturam e tornam visíveis as articulações que se apresentam diluídas em fragmentos textuais do romance. Para a determinação das rotas, consideramos a possibilidade de navegação por rotas lexicais e unidades temáticas.

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Você está em Leitura por rotas » O Corpo de Ö [O4]

No breve salto, neste espaço de relâmpago em que o peixe voa e vê as cabras mordendo as pedras das ilhas, neste salto breve nos confunde a luz das interrogações, que não são poucas. Emergimos do mar para indagar, Abel.

Quem fez meu corpo? Observo meus pais, demoradamente, compara-os entre si, comparo-os comigo e vejo: não foram eles. Tão de longe vem meu corpo que eles esqueceram o que significa. Transmitem-no como um texto de dez mil anos, reescrito inumeráveis vezes, reescrito, apagado, perdido, evocado, novamente escrito e reescrito, uma oração clara, antes familiar, tomada enigmática à medida que transita, em silêncio, de um ventre para outro, enquanto a língua original se desvanece. E de falar, quem foi meu mestre? Ouço meus pais falarem, falam entre si com surda, amável, clara violência e sei que não eles me ensinaram a falar. Aos nove anos de idade, ainda não falo. Não sinto a voz em mim. Pareço um cão humano ou uma possessa infantil, uma criança carregando em si o demônio da compreensão e da mudez. Tudo ouço – ventar, baterem as portas, risos, jato das torneiras, ordens, pulsar o coração, veículos na rua, pássaros cantando - tudo ouço, mas não me aventuro a repetir esses sons e tudo para mim é indecifrado. As palavras sobressaem-se do meio dos ruídos, mas tão-só como fios de outra substância em um novelo inextricável. Distingo-as, nem sempre com muita nitidez.

Sei que haverá um código, um sinal para chamar-me. Procuro descobri-lo no confuso ir e vir das coisas que me cercam. Será um som, será um odor, será uma cor, uma claridade? Por vezes, percutem um martelo, ou me deparo com a fachada de um prédio, ou vejo desenhos num muro, ou cravo as unhas na pele. Fico perguntando se alguma dessas coisas é meu nome: o soar do martelo, a parede brilhando, os riscos no cimento, a dor que sinto. Assim vivo, nesta comunhão que me multiplica e atormenta, assim vivo, até precipitar-me para baixo no meu velocípede, eu e o mundo, eu e as três rodas que giram em derredor de mim, e tudo escurece e nessa escuridão eu sou novamente formulada, eu, novamente sou parida, sim, nasço outra vez.

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