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Você está em Leitura por temas » Tema A - Roos e as cidades [A9]
Residentes apanham a correspondência no grande quadro de madeira, com subdivisões numeradas, entre o primeiro andar e o térreo. Retiro as duas cartas que me esperam e sigo para o refeitório. Roos almoça sozinha numa das mesas ao lado da extensa vidraça, o rosto pensativo voltado para o dia claro, o casaco azul-marinho no espaldar de uma cadeira vazia. Termina o mês de abril e, embora as árvores reverdeçam, o tempo continua frio. Sento-me longe de Roos. Abro a carta da Gorda: comunica o noivado de Estêvão com uma viúva sem meios e mãe de filhos. "Imagine, vinte e um anos, quase seis mais moço que você. Sabe a idade da tal noiva? Trinta e nove nos costados e varizes até no olho da goiaba. Esses seus irmãos, meu filho!" Decresce em mim, enquanto aqui estou, a certeza de que, embora não suspeita, uma palavra ou um fato, a mim destinados, jazem em tudo que Roos pensa ou realiza, mesmo no gesto de levar à boca um copo dágua. "Aquela pessoa que sabemos esteve aqui ontem, alegre demais" - leio ainda - com a notícia de que você passou no concurso, perguntou quanto era o ordenado e beijou o Tesoureiro. A mim ela não beija. Formiga sabe que roça come." Roos passa por mim como se não me visse.
No meu quarto, abro a outra carta e reencontro a caligrafia miúda e sinuosa, as curtas e eficazes orações onde a ausência de lamentos ou censuras parece instilar a afirmação de que eu, Abel, sempre acabo saldando as minhas contas, tudo isso misturado com alusões a fatos que nos são estranhos, como o calor que tem feito, a primeira Missa a ser rezada em Brasília ou a situação dos transportes coletivos. As páginas rescendem um perfume evanescente e irreconhecível.
Guardo na gaveta essa carta e respondo a da Gorda. Assalta-me, em meio a uma frase, a convicção de que eu e Roos iremos em breve defrontar-nos - e que tudo será acionado. Concluída a carta, escrevo outra, fria, para o Tesoureiro, pedindo informar-me quando expira a validade do concurso e, portanto, até quando poderei adiar a posse. Soam - e nem sempre atendem às chamadas - telefones nos quartos próximos.
Ponho as cartas na caixa do Correio perto da Aliança, contorno o quarteirão, sigo a calçada do Luxemburgo. Mulheres vendem flores ante o portão do jardim e as pontas amarelas das grades brilham sob o céu esverdeado. Afasto a idéia de antes do jantar fazer uma visita aos Weigel. Examino, mais uma vez, os objetos expostos numa esquina da rua Vaugirard, todos anteriores a 1930: bonecas de caras semelhantes às que sorriem nos cartões-postais da época, locomotivas, latas de chá, cartas de baralho, jogos infantis, livros para crianças (Bobine chez les Fauves, Aristide et Bobine), cartazes, rótulos, frascos de remédio pertencentes a mortos e ainda com restos da poção. Gritos repercutem na vitrina. Uma mulher, não longe de mim, insulta um homem; sem responder, ele espanca-a, corta-lhe as palavras com mão lenta e firme. A mulher veste um mantô de cor parda, sem botões; o parceiro, uma longa e enodoada gabardina. Curva-se, este, para apanhar a boina que caiu; a mulher atinge-o nas costelas com o bico do sapàto, corre e abre os braços em frente a um automóvel, que se desvia e segue. Está grávida de uns sete meses. O homem avança, arrasta-a e bate-lhe no queixo - com tal precisão que ela gira duas vezes antes de voltar a equilibrar-se. Algumas pessoas, ao longe, observam. Sem calcular as implicações da minha decisão e alheio à circunstância de estar em chão estranho, posto-me diante do homem. Vejo-o enfiar a mão sob a gabardina (meu irmão Eurílio assassinado a tiros numa tarde nublada e sufocante, em 1953, com dezenove anos incompletos, num bordeI do Recife) e pergunto se acaso não me engano ao situar em Roos o acontecimento que espero ao longo de dez dias e do qual seria o alvo. Ouço, a meu lado, os soluços da mulher. Não, não é este o momento, há outra coisa, em outra parte, à espreita: meu portão ou alçapão está em Roos. Dou um passo, o desconhecido move-se também, cruzamo-nos, seguimos devagar em rumos opostos. A mulher irrompe em maldições.
Atravesso, sem incertezas ou conjeturas, o refeitório iluminado e ecoante de risos, Roos sozinha à mesa lê uma revista, apresso-me, ninguém senão eu deve fazer-lhe companhia, chamam-me, finjo não ouvir, sento-me diante dela.
Antes que eu fale, põe a revista de lado e indaga se conheço a Holanda. Oferecem-lhe uma oportunidade, recepcionista em Amsterdam, na MACROPACK-57, viajará dentro de dois dias, passará sete ou oito, talvez mais. Sem erro possível, reconheço o instante: é este. Uma fulguração. Aguardo-o incerto e agora ele salta sobre mim, inconfundível, estou ante um traço divisório. Cerro as mãos e:
- Roos, quero seu endereço em Amsterdam. Vou à Holanda, fazer-lhe uma visita. Posso?
Há, em minha voz, autoridade e súplica.