UMA REDE NO AR - Os fios invisíveis da opressão em Avalovara, de Osman Lins

Leitura por Temas: O ROMANCE Avalovara é estruturado em oito temas, indicados pelas letras R, S, A, O, T, P, E, N, cuja origem é o palíndromo SATOR AREPO TENET OPERA ROTAS. Cada uma das letras é acompanhada de um título. A disposição dos oito títulos obedece à ordem da inscrição das letras no quadrado, conforme a incidência da espiral que lhe é superposta, gerando uma estrutura não seqüencial.

No agrupamento por temas, desconstruímos o entrelaçamento dos temas e os dispomos em ordem seqüencial, tema por tema, formando oito unidades, cada uma com seu desenvolvimento contínuo. Isso possibilita um tipo de leitura seletiva, já previsto pelo próprio autor.

Imprimir tudo    Voltar

Você está em Leitura por temas » Tema A - Roos e as cidades [A15]

Da cabina telefônica, observo as pessoas sentadas nos cafés ou paradas diante das barracas - de castanhas, de sanduíches, de jornais, de tiro ao alvo - que atravancam as calçadas do Boulevard Saint-Michel. Casais de jovens riem ante as vitrinas ou seguem abraçados sob as árvores. Tese de Kruschev aprovada na U.R.S.S. René Coty no Vaticano. Navios britânicos cruzam Suez. Guy-Mollet e a Argélia, Eisenhower, Oriente Médio. Que me importa tudo isto? Nada falta para a viagem à Suíça com Anneliese Roos e se lhe telefono é para desviar a minha impaciência. Mas reconheço a custo a voz que me responde e as primeiras frases parecem contorcidas, quebradas, emitidas pelo avesso, tão inesperado o que me diz. Desligo, ligo outra vez e agora as palavras são nítidas, denteadas, cortam-me, preferia que eu não fosse, sim, problemas pessoais, poderia eu desistir?, sim, isto, explicará depois, depois, quando voltar, não a julgue mal, com precipitação, ou com rancor. Saio da cabina, lanço-me pela suja escada do metrô, ponho-me a vagar de uma estação para outra, sem objetivo, olhando as abóbadas ladrilhadas, os anúncios, os empregados dos subterrâneos, os vagabundos nos bancos de espera, os mendigos postados nos longos corredores das estações de correspondência. Ventos súbitos batem-me na cara, oleosos. Vindos de onde? Desço afinal em Notre-Dame des Champs, apanho minha bagagem, toco para a Gare de Lyon. Roos, no imenso saguão, avança lentamente rumo às plataformas. Devo abordá-la? A série de pinturas sobre os guichês para venda de passagens, quase todas alusivas a cidades do Sul; Nimes, Montpellier, Toulon, Monte-Carlo, Nice, Menton. Então? O tempo da pergunta é o tempo de perdê-la entre as centenas de desconhecidos. Tendo, desta vez, adquirido bilhete de primeira classe, acomodo-me num carro de segunda e fico observando o cais, de pé no corredor, até que as portas se fecham e além das janelas tudo começa a passar. Vejo desfilarem os minutos como se o tempo fosse uma paisagem, esses campos cultivados que ficam para trás, com girassóis, papoulas, gavelas de feno. Que viagem é esta? Para onde vou ao certo e com que fim? Os segundos moem-me, rolam em mim como pedras, pois cada momento abriga a possibilidade de que Roos venha e fale-me. As escadas em hélice. Roos com a mão estendida em direção ao pássaro. Bato palmas para que ele voe, para que eu não me enrede na armadilha. Armadilha? Agora é o inverso que me veda ir vê-la, procurá-la. Receio ir ter às suas mãos e assim a perder. A paisagem esmaece: acendem-se as luzes no carro. (Os trens, quando saem do Recife, atravessam os alagados negros. Homens e mulheres, a lama podre à altura dos joelhos, caçam caranguejos e mariscos.) Sei, soube sempre que Roos não me é ofertada nem se oferta - e também me propus chegar a ela, romper as guardas, eliminar as distâncias. Vejo-me porém diante de mim mesmo, pusilânime, hesitante, receando quebrar os copos, os espelhos, as vidraças, as pontas do lápis. (Os mangues são cobertos de mocambos e meninos de barriga lustrosa dão adeus. A lama cheira a carniça e está sempre cheia de urubus.) Quanto resta ainda da viagem? Um terço, um quarto? Assim aguardamos, na juventude, durante anos, algum evento que não sabemos bem qual seja, que pode vir de um encontro, de uma carta, que não vem nunca e cuja impossibilidade só reconhecemos quando descobrimos haver fugido a época adequada à sua vinda, que agora tememos, pois seria desesperante vir depois do tempo, vir quando não mais pode regozijar-nos.
Abro, de vagão em vagão, a porta das cabinas. Anneliese Roos está de pé no corredor, talvez para que eu mais facilmente a encontre, as mãos erguidas e apoiadas no vidro, olhando vagamente para fora, para os escuros campos de cultivo, agora invisíveis. Ponho as minhas mãos sobre as suas; o fato de não se mover diz-me que estava à espera, sim, esperava. Desde quando e quantas vezes terá aberto a porta, vindo para o corredor?
- Você prometeu não procurar-me.
Sua voz mistura-se com o rumor dos êmbolos e das rodas nos trilhos, parece deslizar sobre esses sons duros, deslizar como um óleo, amaciando-os.
- Não pude mais, Roos.
Nossos rostos estão próximos e eu vejo no vidro, espectrais, meu reflexo e o seu, unidos nas mãos.
- Você prometeu. Não devia ter-me procurado.
- Que aconteceu? Por que eu não devia vir?
Suas mãos deslizam sobre o vidro, ela se volta e me fixa.
Cidades crepusculares, desconhecidas e, como sempre, desertas. De uma esquina a outra, no entanto, de um prédio a outro, das lucarnas para o solo, dos porões para o teto, como se em toda parte houvesse fios esticados, uma tensão ressoa. Um som, um zumbido.
- Tenho problemas.
- Que tipo de problemas? Fale!
- Prefiro não falar. Além do mais, odeio perguntas.
Haverá realmente dito a segunda frase? Quem sabe se a ouço antes do tempo justo, escandidas por uma mulher que não conheço ainda e me ignora? É possível, igualmente, que as destilara eu próprio em minhas sombras, para impedir-me de insistir junto a Roos e conservar íntegro o enigma, rico em suas virtualidades como não importa que revelação. De qualquer modo, o silêncio obstinado de Roos, detestável que seja, por certo atende ao que sou. Tenho o direito de indagar (no átrio de Santo Eustáquio, em Bruxelas, observando aos últimos clarões da tarde a nave do templo, a qual, ao invés de prosseguir na linha da visão, inflete para o lado esquerdo ao aproximar-se do altar-mor, quase ocultando-o, fruo até o embotamento o íntimo desequilíbrio provocado por essa anomalia arquitetônica) se a esquivança de Roos não será um cálculo, uma resposta precisa a disposições do meu temperamento, se ela não a usa como um véu transparente.
- Ficaria tão grata, se não insistisse. (Prende-me de leve o braço.) Não desembarque em Lausanne.
Consigo fazê-la entender que, pelas reproduções, ela parece o modelo de uma Madonna col Bambino, de Giovanni Bellini, existente em Milão e relacionada, dizem, com o Retábulo de Pesaro? Penso, Roos, se Bellini recebeu, como uma espécie de antecipação, a graça de vê-la. Compreende que há anos desejo examinar, na Biblioteca Brera, os mapas da Geografia oferecida por Lorenzo de Medici à esposa? Que atendo ao que me pede e continuo viagem se prometer passar comigo um dia em Milão?
Minha voz cada vez mais seca e áspera, areia grossa misturando-se ao rumor do trem.
- Por que não segue comigo? Por que não manda as cautelas para o diabo? Roos, eu contava com essas cinco horas de viagem para... Não foi possível e eu... tenho um minuto ou dois para dizer o que só aos poucos...Não vejo apenas o seu corpo, não no sentido comum, quero chegar a você, amo-a, Roos, não, não sei se é isto. Roos! Roos!
Suavemente, fecha-me a boca com as mãos:
- Pensa que não vejo? Que não sei? Mas tudo isso é inútil e sem futuro. E mesmo sem presente. É o meu marido que está em Lausanne.
- Sanatório?
O sol pisano sobre os mármores dos monumentos e as velhas fachadas ocres ou rubras margeando o Arno. No centro do Batistério, o eco dos meus gritos, três, quatro, ressoando como um sino de bronze. Sua voz lenta, a palavra difícil, a tenra garganta atravessada de agulhas.
- Sim. Há oito meses.
- Têm filhos?
Uma cidade em círculo (Nordlingen?), outra retangular (Aigues-Mortes), outras sem plano, todas sob a neblina e a noite. Vento.
- Eu sigo viagem, Roos.
- E onde poderia encontrá-lo, se...por acaso...eu for a Milão?
- Quantos dias vai ficar em Lausanne?
- Dois. Volto depois de amanhã, ao anoitecer.
- Estarei na estação. Esperarei todos os trens que chegarem da Suíça.

© Copyright 2012 - UMA REDE NO AR :: Os Fios Invisíveis da Opressão em Avalovara, de Osman Lins. All rights reserved.

Centro Universitário Ritter dos Reis - Rua Orfanatrófio, 555 - Cep: 90840-440 - Porto Alegre/RS - Brasil | Telefone: +55 (51) 3230.3333