UMA REDE NO AR - Os fios invisíveis da opressão em Avalovara, de Osman Lins

Leitura por Temas: O ROMANCE Avalovara é estruturado em oito temas, indicados pelas letras R, S, A, O, T, P, E, N, cuja origem é o palíndromo SATOR AREPO TENET OPERA ROTAS. Cada uma das letras é acompanhada de um título. A disposição dos oito títulos obedece à ordem da inscrição das letras no quadrado, conforme a incidência da espiral que lhe é superposta, gerando uma estrutura não seqüencial.

No agrupamento por temas, desconstruímos o entrelaçamento dos temas e os dispomos em ordem seqüencial, tema por tema, formando oito unidades, cada uma com seu desenvolvimento contínuo. Isso possibilita um tipo de leitura seletiva, já previsto pelo próprio autor.

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Você está em Leitura por temas » Tema A - Roos e as cidades [A17]

“Quase na hora do seu trem, Roos.” Seguimos lado a lado, as valises na mão, rumo às plataformas de embarque, nomes sonoros precedem-nos, os nomes da nossa viagem, desolam-me a altura do teto, das escadas, as dimensões da estação, seus espaços inóspitos, essa aridez, passamos ante a banca de revistas, ofereço-lhe algumas (Burda, Stern), cruzamos a borboleta, ouço apitos de trem e gritos de pavões, a paisagem alpestre e as luxuosas vivendas desfilam sob a chuva. - Grata pelos lagos. - Se puder, mande-me um cartão para Ravena. Estarei lá numa semana. - Mandarei. - Nunca agradecerei bastante a você por ter vindo a Milão. Sobe no trem, acomoda a valise, olha-me através da vidraça. Falta um minuto, ainda pode descer. Varese, Como, Intra, Baveno, Stresa, Chiasso, Verbania... Acode-me a esperança de que estes nomes lacustres e o domingo chuvoso voltem em alguma tarde hibernal a essa mulher que se vai, enredados no sol de outros momentos. Baixa a janela de vidro, estende-me a mão, Ciao, o trem se move e seu gesto é o mesmo com que busca, o mesmo, em Amboise, fascinar o pássaro que espanto com um bater de palmas. Novos dias de caça. Os últimos? O complexo ferroviário (FFSS), quilômetros de trilhos, de dormentes, postes inúmeros, cabos elétricos, locomotivas, pessoal da estrada e de escritório, regulamentos (VIETATO), horários (PARTENZA), estações (SOTTOPASSAGIO), controles eletrônicos, rádios, ligações telefônicas, uma roleta imensa e bem lubrificada onde migro durante treze dias, sempre com insucesso, em rápidos, expressos, noturnos e composições de bitola reduzida que seguem devagar e se detêm em muitas estações, entredormido sobre a trepidação das rodas, ou procurando um modo de obter, com perguntas de través, indicações sobre o que procuro. Vou e vou, de Milão a Verona (160 quilômetros), 40 entre Verona e Pádua, entre Pádua e Veneza o duplo disto, 200 de Veneza a Ravena (a cidade está em festa, fechado o correio, não sei se me espera alguma carta de Roas), 70 ou 80 separando Ravena de Ferrara, mais 120 Ferrara de Florença, 80 no trajeto Florença a Pisa, de Pisa a Roma: 300 e tantos, de Roma a Nápoles: 230?, não muito menos de 400 - ou talvez até mais - de Nápoles a Assis e daí a Arezzo, e 400 no lance Arezzo-Milão, sem falar nos 822 que me separam de Roos (USCITA), para quem, de todos os lugares, envio cartões nos quais desenho o mapa de austrálias possíveis, faunas de sonho e um golfo onde escrevo Je vaus aime. Os dois mil quilômetros desse itinerário têm alguma coisa de demência. Caberia sensatez? A própria aceitação da busca já contraria normas ordinárias de conduta; e, por vezes, a decisão de ir a certa cidade surge improvisa. Só em Nápoles - e não em Florença - me ocorre, já desesperado, como se jogasse, em números nos quais não confio, os últimos centavos, fazer a tentativa de descer em Assis e Arezzo. Por outro lado, estou convicto, como aquele tão versado em buscas e viagens, de que para certos empreendimentos "uma desordem bem meditada constitui o verdadeiro método". A meditação, é certo, faz-se neste caso com o auxílio de mapas; e minhas conjeturas, quando muito, apóiam-se nos dados, sempre tão sumários, dos impressos turísticos. Em última análise, nesta migração, entrego-me um pouco cegamente à sorte - já que me transformo, nisto, em jogador - e, para fazê-lo, bloqueio as íntimas vozes que me advertem sobre a discordância entre as proporções da busca e as minhas posses, que só me permitem, neste jogo em que o capital é também constituído pelo tempo da minha existência e que em mais de um sentido pode arruinar-me, arriscar em um número muito reduzido de possíveis. Não importa, jogarei o que puder. É o mínimo que devo fazer e este mínimo é também o único acesso lógico ao sorteio. Persuado-me de que a Cidade, por pouco que se identifique - e não foi seu aparecimento que impôs esta convicção, desenvolvida com o raciocínio, mas a evocação de alguns antecedentes e o exame de símiles - emite uma luz prestigiosa. Ahab, para citar apenas um exemplo, assumiria o encargo que o destrói, aceitaria a exigência de sua longa caçada, não fosse Moby Dick um ser desmesurado e no qual se encarna "tudo o que remove o sotavento das coisas"? Este princípio, até certo ponto incontestável, vale-me. Desfaz a tentação de descer em todas as cidades onde passo, limitando-me às que por motivos precisos - história, obras de arte, mortos - elevem-se por sobre o geral. O meu olhar torna-se mais analítico, agudo e cauteloso. Farejo, cão, nas cidades percorridas, uma presa intangível, uma caça que vi, eu, cão, por um espelho, mas da qual não cheguei a distinguir o cheiro. Não poderia afirmar, fraudado em minhas buscas, desperdiçados estes dias. Silencio sobre códices e incunábulos vistos; e quanto a estas realizações artísticas que - contempladas, por vezes, naqueles lugares onde foram concebidas - me transmitem instruções sobre o livro que em segredo aspiro escrever e cujo tema central seria o modo como as coisas, havendo transposto um limiar, ascendem, mediante novas relações, ao nível da ficção. Não me responde Pádua? Nápoles não me responde? Nelas me desmembro, em exercícios vários. Olhos nos bairros da periferia, o nariz nas feiras, solta no ar a pele, os pés extraviados, a boca nos cafés, nos bordéis, exangue, o sexo, as orelhas nos mercados e em ônibus que ignoro aonde vão, a população dos subúrbios, suas casas, peixes, legumes, frutas, calamares, as temperaturas e as consistências das coisas, ruas desconhecidas, seguem-me putas fatigadas e pederastas tímidos, vinhos e perguntas, o sexo exangue, manipulado por mulheres que não penetrará, pois assim decidi, para que riam do seu possuidor, julguem-no impotente, alguém mais lastimável do que elas, as vozes, os gritos, os latidos, os dobres. Errôneo, ainda, dizer que a Cidade não encontrada continua desconhecida e oculta quanto antes; que não tenha sofrido, a sua identidade, um processo qualquer, inacabado, de desvendamento. Revela Amsterdam a existência, em suas ruas, de claridade ou de algo de que a claridade seja o sumo? Em Pisa, leio a declaração de que uma incerteza, um talvez, uma dubiedade nela estarão presentes (nela, a Cidade), sem o que, minha procura não encontraria recompensa. Quem me esclarece por quê? Em todas as praças de qualquer cidade, surge um cordeiro branco, manso, com um guizo e uma fita rubra no pescoço. Pressiona-me docemente a coxa com a cabeça tenra e segue-me calado. Ante a grande torre cilíndrica, desequilibrada pelo male oscuro, infiltrações e erosões subterrâneas, mais dois cordeiros, igualmente com guizos e fitas no pescoço, vêm juntar-se ao que sempre nas praças me aparece. Dóceis, seguem-me. O Sol deste final de maio, como uma poção alquímica, penetra os mármores, óleo ígneo que acendesse o interior das pedras, todas as pedras florindo, em chamas, no âmago, de modo que a claridade parece ao mesmo tempo vir de fora e ser emitida pela Torre, o Batistério, os outros monumentos. Um prenúncio? Contemplo estas construções mais ou menos inclinadas. Sei que os sedimentos marinhos, no subsolo minado pela torrente do Arno, desequilibram a cidade, fazendo vacilarem os fios de prumo, lei dos edifícios, que quase todas as velhas construções cedem ou inclinam-se (Pisa, cidade birrefringente, construída no zircão ou no espato de Islândia), mas nem assim perco a noção de verticalidade. Contíguas a essas obras, outras delineiam-se, do mesmo modo esplendentes, com os mármores brilhando contra as nuvens, porém na vertical, e esta Torre, esta Catedral, são ilusórias, pois os edifícios reais inclinaram-se com o tempo, mas é nestes, nos inclinados, que perpassa o vulto do irreal, exatamente porque neles se instalou o fio tênue entre o que persiste e o que passa. Como em Amsterdam, Roos, ser - além de ofuscante - dúbio e fugidio, desequilibrado em sua absoluta simetria, não está alheia a essa experiência. Do mesmo modo que, em outras circunstâncias, ela presente (carne limitada e espaços construídos), sou precipitado nas suas cidades, descubro-me, ante a dubiedade e a luz pisanas, não ante Roos, mas introduzido no universo da sua presença - certeza não perturbada pela mínima sombra de dúvida. Reconheceria um arqueólogo, com a mesma segurança, uma epígrafe ou um friso de civilizações com as quais houvesse convivido, acaso os descobrisse, a centenas de metros de profundidade, ainda que desfigurados. Assim, dos grandes espaços, um gato cósmico estende-me a garra. Mas cuidado! Não supor que por causa desse gesto me pertencerá. Logo recolherá a garra e ele mesmo, em seguida, se recolherá a outro gato, de que - quem sabe é a unha. Avançar na rede dos enigmas pode levar-nos a enigmas maiores. Afinal, constato, de volta a Paris, não ter-se alterado a natureza ou o ritmo da extensa frase que, sabendo ou não, Roos, foz do ir e do vir, me escreve: uma correspondência de três ou quatro dias, inclusive carta de Lausanne e a mensagem que, tudo fazendo para assediá-la, mando de Verona - uma folha das vinhas que precedem a cripta com o presumível túmulo da jovem Capuleto e o verso It is my lady; o, it is my love -, aguarda uma vez mais a sua volta.

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