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Você está em Leitura por temas » Tema A - Roos e as cidades [A7]
Seguimos lado a lado, no jardim, dando-me Roos a impressão de que considera natural e mesmo inevitável a minha companhia - e logo outra presença, mais prestigiosa que as ricas estâncias visitadas,
que os versos de Anacreonte
e a paisagem da Loire (sem os pássaros, as árvores, o mormaço e a luz violenta do Nordeste), realça a atmosfera por assim dizer emblemática com que se revela, em terra estranha e sobrecarregado de elementos não absorvidos pelo meu olhar afinal de contas bárbaro, este amor insensato - bem o sei - e tão fugidio quanto o seu objeto.
Li que Leonardo da Vinci, como Girolamo della Robia, anda por estas paragens e aqui morre. Anneliese Roos me pergunta se já visitei a sua tumba.
Aqui estamos, frente a frente, silenciosos (diríamos o quê?), eu contemplando-a e ela com o rosto pensativo, os braços caídos, as mãos cruzadas, as flores à altura do sexo: contempla a lápide de Leonardo. Emudeceu o sino; sons de vozes vindas do jardim entram amortecidos na capela. Então, de súbito e por breve tempo, como numa queda ou numa vertigem, entrevejo na cabeça de Roos uma cidade de ruas tortuosas, inóspita, fria e ventosa apesar do sol que a inunda, porém com grande e alvos templos revestidos de mármore. Exclamo em meu íntimo:
"É a pátria de Dante!"
Estamos ainda ante o pó ou a lembrança do pó dos testículos de Leonardo e dos seus olhos
- e nos alcançam, apagadas, as vozes dos que passam no jardim. Sinto o cheiro do animal que desde a infância, sempre que interrogo coisas simples e indizíveis como a superfície de um espelho e as paredes lisas, aparece atrás de mim exalando a sua inhaca que significa: "Não consegues, Abel." Afasto, procurando resguardar-me e enxotar o animal nunca visto, com o seu cheiro de excrementos e de dentes podres, a visão repentina de Florença na cabeça pensativa de Roos, certo entretanto de que não escaparei e de que, por mais que me esquive
(não é o que sucede ao chalé, com seus alpendres, e quartos, esboçado em cem textos ineptos?), levarei anos e anos buscando aquele ponto onde se conciliam o arisco e o verbo: tentando fazer visíveis Roos e as cidades que abrange.
Assim, outra vez caminhando ao seu lado sob o sol sem flama deste domingo de abril, quase acredito ser eu o mesmo homem que sou antes de vê-la, calada, as mãos e as flores à altura do sexo, na capela onde
dorme o bastardo toscano, pintor, poeta, músico, planejador de engenhos bélicos e de construções aquáticas, também ele perseguido pela ambição de arrombar portas fechadas, com a vantagem de que as abre sempre ou quase sempre -
como o florentino cujos coices abrem o Paraíso. Ver é encargo tortuoso.
Um pássaro castanho, com manchas ferruginosas e duas listas brancas atravessando as coberteiras das asas, pousa na relva. Qual o seu nome? Roos, lentamente, dobra os joelhos. Na mão esquerda as papoulas, a rosa e os gerânios; a direita estendida em direção ao pássaro. Algo de felino e de frágil desprende-se da figura recurva, do rosto concentrado (onde cidade alguma transparece), dos olhos quase negros, agora entrefechados e metálicos. As abas do casaco dobram-se na grama. O pássaro, explorando o solo, aproxima-se da mão sem anéis e vazia. Age como se a mão de Roos fosse um ramo, um bebedouro. Mas o bebedouro ou ramo, com lentidão quase imperceptível, também vai reduzindo a distância.
Detém acaso a minha companheira algum poder secreto? Qual a afinidade entre ela e a ave? Flui do seu corpo uma paz peculiar, adequada à natureza arisca dos pássaros? Vejo-me sem governo, submetido à sua presença e seguindo-a como um manto, uma sombra, vou em sua direção tal esse pássaro ferruginoso e é possível tenha-me estendido Roos, sem que disto eu possa me certificar, outra mão, que não vejo mas existe.
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