UMA REDE NO AR - Os fios invisíveis da opressão em Avalovara, de Osman Lins

Leitura por Temas: O ROMANCE Avalovara é estruturado em oito temas, indicados pelas letras R, S, A, O, T, P, E, N, cuja origem é o palíndromo SATOR AREPO TENET OPERA ROTAS. Cada uma das letras é acompanhada de um título. A disposição dos oito títulos obedece à ordem da inscrição das letras no quadrado, conforme a incidência da espiral que lhe é superposta, gerando uma estrutura não seqüencial.

No agrupamento por temas, desconstruímos o entrelaçamento dos temas e os dispomos em ordem seqüencial, tema por tema, formando oito unidades, cada uma com seu desenvolvimento contínuo. Isso possibilita um tipo de leitura seletiva, já previsto pelo próprio autor.

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Você está em Leitura por temas » Tema A - Roos e as cidades [A14]

Ao romper da segunda-feira, cai uma chuva pesada. Passo, estendido na cama, o intervalo entre o café da manhã e o almoço, examinando impressos de turismo. Perto do meio-dia, um clarão mais intenso que os outros rasga o céu e eu acho natural que um tilintar agudo seja audível no cerne do trovão, duas vezes se alce em meio ao atroar prolongado e tão intenso que as portas do guarda-roupa se abrem. Só ao terceiro toque distingo o telefone. Levanto-me devagar e atendo: Roos me comunica haver chegado. - Ontem? À noite? Não encontrou então os olhos num envelope? Que olhos? Que envelope? Afirma ignorar de que se trata. - Pensei que houvesse voltado há três dias. De onde está falando? Da companhia? Sim. Muitas coisas atrasadas. Vai almoçar com o chefe, perto do escritório. - Quando a verei, Roos? Um silêncio. A chuva e a ventania. Ruídos de máquina de escrever, de explosões abafadas e de passos solertes antecedem a sua voz: - É possível que vá jantar aí. Mas não me comprometo. De qualquer modo, não sei dizer a que horas chegarei. Vem pelo Boulevard Raspail, sob a chuva fina, à luz do entardecer ainda prematuro, com papéis e pastas sob o braço, envolvidos num plástico. Capa cinzenta, chapéu do mesmo tom, luvas castanhas e botinhas brancas, a meia altura das pernas. Precedem-na estandartes dourados, em mastros invisíveis, altos, com desenhos escarlates de sóis, de grifos, à direita e à esquerda de seus ombros, destacando-se contra o céu pesado, os tetos úmidos e o negror das paredes. Olha-me com alegre naturalidade, um pouco à distância, parecendo insinuar que não responde pelo nosso encontro em Amsterdam ou como quem diz lavar as mãos ante os erros de algum parente remoto. Tem de concluir o relatório, trocar de roupa, descansar um pouco, às oito horas podemos encontrar-nos. Gotas de chuva cintilam no seu rosto. Tomamos o metrô e ela segura a minha mão, porém de modo fugaz (cerca-a um som apagado de fanfarras) enquanto subimos no elevador da Cité. Ao sairmos, já os outros passageiros romperam esse contacto e é por cima do seu ombro que eu vejo, contra o céu estrelado, a torre em flecha da Sainte-Chapelle. Dezenas de pessoas seguem-nos, rápidas, entre as barracas dos vendedores de flores, haverá um concerto em Notre-Dame. À noite, depois das chuvas, lembra-me ladrilhos polidos e frascos transparentes. - Estou alegre em vê-la de volta. Quai de Corse, um cheiro ácido e importuno de urina. Quai aux Fleurs, carros estacionados, as torres das construções no outro lado do Sena. Aproximamo-nos da catedral, de tal modo iluminada que parece leve, a ponto de alçar-se do solo e flutuar. Gotas esparsas de chuva caem em torno de nós. Sentamo-nos, frente a frente, sob o toldo verde do café. Toda as luzes estão acesas na praça. Passam veículos quase sem cessar e nem sempre consigo ouvir a voz de Roos, que orienta a conversa num sentido ao mesmo tempo neutro e pessoal. Muitas aves no Brasil? Se li, de Goethe, o Werther. Que acho da cena final entre o herói e sua bem-amada. O que busco no mundo. Muros de pedra no seu rosto, irreconhecíveis, banhados de sol; ventos nos plátanos; duas hienas sentadas no meio de uma ponte, as cabeças entre os pilares de ferro, olhando o rio. Aperto suas mãos. Deslizam entre as minhas, que espalmo, tensas, sobre o tampo vermelho da mesa. A estátua de Carlos Magno, sob as luzes fortes da praça, parece revestida numa armadura de aço e claridade. - Você conhece Lausanne? - Não, Roas. Por quê? - Por nada. Cessa um instante o desfile ruidoso dos veículos, flui de Notre-Dame a abertura de não sei que Marcha Triunfal, os calos dos construtores dos órgãos deslizam pelos tubos. Reconheço a mulher diante de mim? Assim haveria de ser o reencontro com o meu irmão Augusto. Hoje, após três anos de ausência, três, ele considera por certo os dezenove de nossa convivência como se evocasse o sabor de um fruto cujo nome não pode recordar. Oh, essas ruas tortuosas, essas paredes de edifícios sagrados ou profanos, esses canais, esses muros, toda essa arquitetura vária, inclusa no corpo de Roos - e tão afortunadamente que não me surpreendo ao ver, no rosto puro e simétrico, luzes vindas de dentro, sim, do sumo da sua carne (não do mundo exterior) e que nascem, por exemplo, dos reflexos do Sol nas águas de Veneza! As cem vozes do coro descem das ogivas sobre a rue du Cloitre Notre-Dame, trituradas pelo barulho dos veículos. Parecem, mesmo assim, envolver numa pá tina de sonho as cadeiras amarelas do café, suas lâmpadas cônicas, as luzes da praça, Carlos Magno entre as árvores com a armadura úmida e do outro lado do rio o perfil dos velhos edifícios. Mais uma vez tento falar de Chambord e também do engano de Paladio, assim como das relações que vejo entre isso tudo e os minerais de que me fala em Amsterdam. Pode-se flagrar, eis o que busco dizer, no espato de Islândia, um fenômeno ao mesmo tempo real e ilusório: a imagem se abre, duplica-se, é uma e duas. Mas há também, na Terra, seres vivos que unem ou multiplicam. Às vezes, o que é mais admirável, não um único ser, mas dois ou três, ou mais, que um acaso reúne e que transformam em quatro as escadas duplas construídas entre quatro vestíbulos de castelo, num dos vales do mundo. Quero perguntar se não acha fantástico saber que há mentes com esse poder seletor, multiplicador, unificador e também conservador. Ela tenta ajudar-me, paciente, a transpor o pensamento, confundo-me entretanto e só consigo dizer - mas sem conexão com o resto - que vagam, no universo, fenômenos tão fugidios e silenciosos que não podem ser classificados e nem mesmo notados. - O mundo, Roos, está cheio de reflexos e de concentrações. - A primeira vista, você parece calmo. Mas é inquieto e inquietante. O sino bate duas pancadas e mais uma, agudas. Nove e meia? Dez e meia? Há quanto tempo estou aqui, ante Anneliese Roos? Seus olhos resvalam por mim e de repente me fitam, rápidos: - Vou a Lausanne quinta-feira. Visitar uma pessoa da família. Sigo de trem, à tarde. Por que não vai comigo? Suas mãos nas minhas, repousadas, frescas no dorso, cálidas nas palmas, com cidades inúmeras aparecendo, e répteis, insetos, aves, peixes e quadrúpedes povoando as casas, os rios e os passeios. - Que posso esperar? - Na verdade, nada. Logo estaremos tão longe um do outro! As cidades: dez, vinte, relâmpagos silentes, umas com as salas acesas e outras com os vidros reverberando ao sol. Seus traçados se cruzam, labirintos presos em outros labirintos. Um rumor confuso se levanta, não sei onde, o rumor que vem de um grande forno aceso quando a tampa se abre. Funde-se com as vozes do coro e com a orquestra, mais uma vez vencendo a trepidação sempre menos intensa dos veículos. Conheço o que agora cantam: o Salmo "ln Convertendo Dominus", de Campra. Colhe-se realmente entre canções quando em pranto jogamos as sementes? Notre-Dame, um navio ressoante entre os ruídos brutos da noite.

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