UMA REDE NO AR - Os fios invisíveis da opressão em Avalovara, de Osman Lins

Leitura por Temas: O ROMANCE Avalovara é estruturado em oito temas, indicados pelas letras R, S, A, O, T, P, E, N, cuja origem é o palíndromo SATOR AREPO TENET OPERA ROTAS. Cada uma das letras é acompanhada de um título. A disposição dos oito títulos obedece à ordem da inscrição das letras no quadrado, conforme a incidência da espiral que lhe é superposta, gerando uma estrutura não seqüencial.

No agrupamento por temas, desconstruímos o entrelaçamento dos temas e os dispomos em ordem seqüencial, tema por tema, formando oito unidades, cada uma com seu desenvolvimento contínuo. Isso possibilita um tipo de leitura seletiva, já previsto pelo próprio autor.

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Você está em Leitura por temas » Tema A - Roos e as cidades [A21]

Carta de Roos, fiel àquele movimento pendular, tão semelhante aos dos parceiros do trapézio, que jarnais oscilam simetricamente, aguarda-me na minha volta de Londres. Viajou para o Havre a serviço da firma e regressa ainda esta semana, no dia 21 ou 22. Pede-me, caso eu não tenha outros compromissos, reservar a tarde do domingo. Há pouco mais de seis anos, em abril de 1951, quando veio a Paris pela primeira vez, sua mãe levou-a a um parque. Havia tantas flores! Jamais o esqueceu: “Não é Buttes-Chaumont. Talvez o Parc Monceau, sim, talvez. Quer ir vê-lo comigo?” Ladeamos as grades altaneiras, douradas no alto e através das quais vemos os freqüentadores, as cadeiras amarelas, pombos, os lampiões redondos sobre postes verdes. O relógio, no elegante pavilhão a entrada, marca quatro menos cinco. O céu dúbio, porém, pressagia chuva e o Sol talvez não volte. Descrevo, sem conseguir expressar o que pretendo, a breve cena, altura dos Açores, no navio da Chargeurs Réunis. Estou no tombadilho e volto o rosto: uma gaivota segue a bombordo, quase ao alcance da mão. Move um pouco a cabeça e nem parece voar. Durante alguns minutos, acompanha o cargueiro, a mesma velocidade, como que suspensa, Roos, no frio ar de fevereiro — e causa-me alegria ver o seu olho direito voltado para mim, agudo, um bico. Depois, houve um mover de asa. Ela se inclinou e desapareceu. Roos, desolada e pouco atenta a minha narrativa lacunosa, olha as colunas de aspecto tristonho, uns poucos cisnes negros, a pérgola com trepadeiras. “Não, não é este o parque. Perdemos o passeio”. “Podemos compensar. Hoje, já é tarde. Mas por que não vamos esta semana a Chartres? A rigor, eu já devia estar do outro lado da Terra. Continuo a esperar, sabe? Entre mim e você, algo ainda deve acontecer. Um fim. Um começo”. “Também gostaria de ir”. “E então? Sexta-feira? Sábado? Dormimos lá. Ainda escuro, vamos a catedral ver os vitrais surgirem com o nascer do sol. Leve a sua máquina. Levarei um filme. Podemos almoçar no campo. A margem do Eure. Voltaremos ao cair da noite. Uma celebração. O nosso adeus. Em Chartres... verei seu corpo”. Dá alguns passos, lenta. Os roxos, amarelos e rubros das aléias verdes, sua memória talvez multiplicasse-os nos seis anos decorridos desde 1951. “Nossos corpos... devem ver-se?” “Sabe que sim. Como se até então fossem cegos”. Pára e olha-me de frente, a estas minhas palavras. Cantam pássaros, discretos, ocultos nos ramos. O vento agita de leve seus cabelos. - Quando iremos, Roos? Sábado? - Sim. Sábado. As horas que se seguem: uma espera dourada. O roçar das gavetas, ao serem abertas ou fechadas, refrata-se em perfumes de bosques; cheira a leite e a capim na madrugada o couro dos meus velhos sapatos; desdobram-se, desprendem-se, da alvura das folhas de papel, lençóis de linho, nuvens de estio; vejo o nosso encontro não situado no tempo, mas num ponto aprazível e tenho a impressão de ir, através das horas, em direção ao onde, ao rio ou a planície em que, de certo modo, Roos me aguarda. Na sexta-feira, chama-me ao telefone. Adquiri o filme? Leve-o. Levará a máquina. As cinco? Dez minutos antes (confronto meu relógio com o pequeno e redondo relógio do Palácio, no Luxemburgo), estou à sua espera, entre as brancas estátuas de Bathilde e Mathilde, rainhas de Franca. Ouço o repuxo no centro do jardim e o rumor dos veículos nas ruas que o circundam. Roos, com um vestido vermelho, vem ao meu encontro. Pesadas gotas de chuva, prateadas de sol, tombam com um leve ruído em seu redor. - Vim despedir-me. Parto amanhã. Pergunto para onde? Não ouço a resposta. Que diferença faz se, como diz, viaja para não voltar? Não poderá, sequer, adiar a viagem por dois dias. Houve problemas, vai gerenciar a sucursal. - Então, Roos, de repente... Tudo se acaba. Para confortar-me, lembra mais uma vez o companheiro enfermo: ele acha que o fim é uma noção enganosa. Não poderíamos, Roos, sair esta noite? Não. Tem de voltar ainda ao escritório e receber uma série de instruções. Credenciais, documentos. Viaja a que horas? Pela manhã. Pus o filme na máquina e fotografo-a em silêncio. No fundo, os troncos das árvores, as pensativas estátuas sobre os pedestais, Berthe ou Bertrade, santa Bathilde, santa Genoveva, outras estátuas distantes, ânforas, as pessoas no parque, pombos voando, o espaço. - Não posso acreditar, Roos. No Coliseu, em Roos, no meio do Coliseu, a ponto de precipitar-me, cair na parte mais baixa da estrutura, no Coliseu, como no meio de uma ossada fantástica, uma grande mandíbula, as arcadas simétricas e os contrafortes, muitos dos quais derruídos, entre uma arcada e outra, e os arcos por trás das arcadas e as janelas portas sobre os arcos, os corredores abobadados, os incompreensíveis vãos. Haveria comunicação entre essas passagens todas? Os fantasmas dos leões transformados em insaciáveis roedores com jubas, urrando, em Roos, dos fossos para as partes altas e das arquibancadas para os fossos, roendo as pedras com dentes velhos e gastos. - Nas águas em redor de Halicarnasso existe um cemitério de navios. Abel: pense quanto passado está ali. O diálogo é vão e insensato, nem sei por que voltamos a falar, eu e Roos em verdade falamos sós, ou isto não é falar, falamos para ninguém, para um morto, de dentro de nossas mortes, pois nunca mais nos veremos e o sumo da sua presença já não subsiste, eu sei. - Sim, Roos, imagino. Todo um passado, à espera. Vejo-a no visor, diminuta, invertida, difusa, com seu vestido rubro, sorrindo, olhando-me, uma flor na mão (fui eu que trouxe a flor?), de perfil, a máquina estala entre meus dedos, clique do obturador, passar do filme, Roos, fugidia e móvel, presa em flagrantes imóveis, nos quais amanhã, depois, depois, tentarei recuperar — o quê? Ressurgirá, em alguma das fotografias, tal como a vejo no jardim do castelo onde repousam as cinzas de Da Vinci? Roos, uma visão, um impossível, a fugidia, a próxima, a ofuscante, a clara, a quase, a que entrevejo, a que perpassa, o relâmpago, a irisada, a apenas visitada, a intangível, a vinda inconclusa, o perene ir. Ainda com o filme no bolso, dirijo-me a casa dos Weigel em busca de refúgio e também para levar-lhes minhas despedidas. No outro dia mesmo, logo que Roos tenha viajado, irei embora. o velho, sustentado pelas três frágeis mulheres, debate-se no leito. Tenso e curvado, um arco. Todo ele - língua, cabeça, olhos - está voltado para a sua direita. Da boca, pende um líquido raiado de sangue. Ajudo as mulheres na última fase do acesso e mal sei quanto dura. Um minuto, dois. Cessado o espasmo, o doente fecha os olhos, seu corpo amolece, ele desfaz-se, pálido, em suor. Suzanne pergunta-me se vou embora. “Amanhã. Sinto ter vindo numa hora dessa. Quando ele despertar, diga que Liév Nikoláievitch esteve aqui". “E... ela?” “Vai também amanhã”. Abraço-a, beijo a fronte de Julie. Aperto as mãos de mme. Weigel: outrora, bem tratadas, tangiam o bandolim. As moças levam-me a porta. Apoiado ao frio corrimão, desço a escada. Um soluço, pesado, rola sobre os degraus escuros. Um seixo. A porta é fechada com violência. Faço rapidamente as malas. Folhetos de turismo no armário, nas gavetas, em cima da mesa. Algumas cidades vistas, outras que nunca o serão. Qual o nome da cidade para onde ruma Roos? Não será, esta, a que eu devia encontrar? Não verei a Cidade, e Roos não reverei, nunca. Pássaros negros e cãos mortos se batem sobre a cama. Saio para a noite, ando pela cidade e vejo-a esvaziar-se. Deitado, eu, com uma polaca; abraço-a como se abraçasse um ser feito de arame e de cabelos de mortos. Ejaculo rneu ódio, meus testículos solucam, choro pelo pênis, ouço-o gemer. Ainda não me vesti e já essa mulher de quem mal vi a bolsa ou os sapatos se despede. Desce. Fico no quarto, um quarto de paredes desnudas, sem nada que se possa roubar. Formigas brancas cobrem-me as mãos, o sexo e o rosto. Lavo-me na pia, elas voltarn a surgir. Lavo-me outra vez, tremendo, enxugo-me depressa, lanço-me escada abaixo. Um mendigo segue-me calado. Vez por outra, como o domador ao urso, dou-lhe uma moeda. Açúcar para os pôneis amestrados. Ratos grandes como porcos atravessam os becos e correm ao longo das pontes. Roos. R - O - O - S. Ravena, Oviedo, Orleans, Salzburgo. Avenidas desertas, cheias de carros estacionados. As janedas fechadas. Um deserto quase igual ao das cidades de Roos. Reno, Riga, Roma, Rodes, Rotterdam, Ródano, Ruão, ruam e rebentem todas. Único ser humano: o que me segue, sombra. Sagres, Salônia, Sena, Salarnanca, Samotrácia, Sodorna, Saragoça, Sèvres, Sídon e Siracusa, sumam. Um vento colérico abala esses nomes, solda-os, desagrega-os, atira-os contra outros nomes e outros ventos. Dois gatos se cruzam, ruidosamente, entre os lampiões amarelos da Ponte Notre-Dame. O mendigo masturba-se. Sena, Florença, Nuremberg, Berna, Múrcia, Viena, Cartagena, Linz. O céu empalidece, desapareceu meu seguidor. Salerno, Budapest, Esparta, Gênova, Sorrento, Reims. Desabem as paredes, arsenais inteiros voem pelos ares, incêndios se alastrem, apodreça a água nos reservatórios, rachem-se os esgotos, voem os telhados, vergastem o ar os cabos telefônicos. Sentado no meio-fio, do lado oposto ao prédio da Aliança, junto ao quiosque com cartazes dos teatros e de Duhonnet, aguardo a aparição de Roos. Entre mim e o portão de ferro, junto as árvores ainda envoltas em bruma e que separam as mãos de direção, pequenos carros com lixo. Roos, o fular veneziano ao solo, abre o portão. Antecedem-na casais de aves semelhantes a flamingos, e inquietas. Nápoles Ancona Coblença Nantes Burgos. Vamos costeando o Luxemburgo na direção da Gare d’Austerlitz, atravessamos o Sena (um cão, nas Tulherias, com dentes fosforescentes, morde a cauda negra) rumo a Saint Lazare. Bilbao Pamplona Liverpool Lion Dublin Antuérpia Groningen Monte-Carlo brindisi uhn lübeck. Os bares fechados - Boulevard Saint Michel - os cafés fechados - Boulevard Maiheserbes - Jardim das Plantas - fechadas as lojas, as agências postais - constança brunswick - mas a cidade desperta - pavianancymilão - move-se aos poucos na névoa da manhã. Que aspecto terá, em hora tão matinal, o Bois de Vincennes? Cre monacor int oali cante granadapalospor tobor deus, um trem do metropolitano no elevado à esquerda da Gare d'Austerlitz, os números amarelos e os ponteiros vermelhos do relógio da entrada em Saint Lazare (por que tantos relógios na estação?), carrocinhas com sacos do correio, messna bruxlas cônia oxd plym gena ogunc ul onia omnia voem pulverizem-se. Descemos, descemos, seguimos sob o alto teto da Gare d' Austerlitz, atravessamos, rumo aos mortificantes e estreitos cais, o largo vestíbulo de Saint Lazare, abraço-a longamente, abraço-a, longamente, ela tenta sorrir, seus olhos estão úmidos, seus olhos estão úmidos, mas o ar está frio, ela tenta sorrir, mas o ar está frio, nas águas em, nas águas, redor de em redor de Halicarnasso há um, Halicarnasso, cemitério de, um cemitério, navios, de navios, no cais ressoa o aviso de partida, no cais, de partida, o aviso, ressoa, ajudo-a a subir, há no ar um odor de violetas, o trem começa a afastar-se, ajudo-a a subir, odor de violetas, o trem começa a afastar-se, ela me acena. Acena-me, dou ainda alguns passos, dou alguns passos ainda; e me vejo sem nada, mais uma vez sem nada, sem nada, mais uma vez, e cego, e cego, ante a minha ofuscante solidão, ante a minha ofuscante solidão.

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