UMA REDE NO AR - Os fios invisíveis da opressão em Avalovara, de Osman Lins

Leitura por Temas: O ROMANCE Avalovara é estruturado em oito temas, indicados pelas letras R, S, A, O, T, P, E, N, cuja origem é o palíndromo SATOR AREPO TENET OPERA ROTAS. Cada uma das letras é acompanhada de um título. A disposição dos oito títulos obedece à ordem da inscrição das letras no quadrado, conforme a incidência da espiral que lhe é superposta, gerando uma estrutura não seqüencial.

No agrupamento por temas, desconstruímos o entrelaçamento dos temas e os dispomos em ordem seqüencial, tema por tema, formando oito unidades, cada uma com seu desenvolvimento contínuo. Isso possibilita um tipo de leitura seletiva, já previsto pelo próprio autor.

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Você está em Leitura por temas » Tema A - Roos e as cidades [A18]

Decorre uma semana, sete dias se vão, uma semana se escoa. Tempo incerto, com rápidas pancadas dágua, trovões surdos, a chuva fustiga a vidraça do meu quarto de fundo em Montparnasse e logo as nuvens se vão, brilha efêmero o céu deste fim de primavera e ventos leves tocam as flores nos outros soturnos peitoris. Vago nos museus (Guimet, Instrumental, Armeniano), ouço rádio (ONU, Leo Ferré, Sierra Maestra, Suez, Charles Trenet) enquanto escrevo cartas que nem sempre envio ou sento-me nos parques, ocioso. Faz uma semana que voltei? Quantos dias nesta espera? Sete? Seis? Restam poucos visitantes nos bancos ou cadeiras portáteis do Luxemburgo. Adolescentes jogam tênis e no céu quase noturno perpassam relâmpagos. Um dos jogadores, inexperto, atira a bola em minha direção. Curvo-me para apanhá-la e fico imóvel: creio ver Roos num banco, as róseas pernas cruzadas, pensativa. Está de volta e não telefonou? Faz espaço no banco, sem demonstrar surpresa e eu me sento. Lívida, sombras de cansaço nos olhos, o costume de lã cinza um tanto frouxo nas ancas. Regressou pela manhã. Esteve em Eltville, a chamado do pai. "Minha mãe não tem passado bem." "E seu marido?" Exime-se de responder. Nós: as duas margens do rio? As duas faces de uma faca? Evasiva. Impressão de estar amedrontada ou à espera de alguém. Fala pouco, levando em conta o tempo decorrido desde o nosso domingo de chuvas e ventos na Itália. Escassas perguntas. Gostei de Veneza? Recebi em Arezzo o seu cartão? Quanto aos que enviei, estão na sua bolsa. Pode acompanhar, por eles, o meu itinerário. Apitos prolongados e exclamações dos guardas atravessam as árvores. Vão cerrar-se os portões. Levantamo-nos. Os pés de Roos no saibro, o compassado ritmo do seu andar: o ritmo com que segue, no meio-dia da Loire. os versos de Anacreonte. Ao longe, bate um portão. - Bom o seu hotel na rue d'Odessa? - Classe C. Resta-me pouco dinheiro. Da única janela, conto muitas outras, cinzentas, todas nos fundos de outros edifícios. Poucas as estrelas visíveis quando me debruço. Constrange-me a idéia de que Roos consinta em ver-me, talvez em desnudar-se, num lugar tão aquém da sua claridade e magnificência. - No hotel, ao menos, você pode visitar-me. Roos... Cada vez mais eu a amo. É como um seixo no estômago. Como pedaços de vidro nos olhos. Finge não ouvir e indaga sobre meus amigos da rua Guynemer. - Fui lá, esta semana, duas ou três vezes. Agora, há um pouco de paz na família. O velho tem passado melhor. Entramos num bistrô junto ao Teatro de França. Os cálices de Porto entre nós, suas mãos junto às minhas, nossos joelhos tocando-se de leve. Frente a frente. O nome em néon do bistrô, Le Petit Suisse, reflete-se nos espelhos, rubro. Carnal e luminosa, esplende, inflamada pela luz do letreiro, a pele de Anneliese Roos. Esta é a mulher a quem amo. A noite se aproxima e um resto de luz, coando-se nas leves cortinas brancas, enreda-se nas coisas como teias. Mal vejo as pessoas que nos cercam. Deslumbrado, só atento para o rosto de Roos, onde cidades desconhecidas agora se revelam e novamente se ocultam, na pele, silentes. - Sinto-me bem, na casa dos Weigel. Omito, por quê?, haver observado que o entusiasmo do chefe de família ao falar dos próprios pecados e do romance russo diminui; que seu rosto adquire certa rigidez e a cor da pele altera-se; que começou a morrer e só eu vejo; e que, contra a vontade, desata-se em mim o impulso de proteger as irmãs, resguardá-las do mundo e do golpe que ante as minhas vistas se arma, esquecendo-me de que nem sequer tenho defesa contra a violência, as recusas, os flagelos que me estão reservados. Mesmo agora, a noção de que um golpe qualquer está a ponto de ferir-me é tão nítida que olho receoso por cima do meu ombro. Atrás de nós há apenas um espelho na parede e alguns casacos leves. Contudo, entre frases neutras da conversa difícil, como o perfil da morte saltando dentro as cartas de um baralho, desliza a frase que há muito receio escutar, sabendo que um dia ela seria emitida: - Esta é a última vez que nos falamos. Meu olhar é como um molde da cidade que em Roos, silenciosamente, lampeja e sorve-me. Onivejo as ruas e o interior das edificações, os tonéis de bebida nas adegas sob a rua, ante canais, as pontes e os objetos empoeirados nos sótãos, a topografia (identifico-a) de Utrecht, a luz de uma tarde de outono, os interiores civis e oficiais, tudo e o que está dentro de tudo, armários e arcas, e o que jaz nas gavetas dos móveis, e nesses aís ressoa a minha voz, com uma inflexão de condenado: - Você acaba de dizer essas palavras, mas tenho a impressão de que estavam fechadas na sua garganta, como num vaso, e que eu as ouço, abafadas, há tempos, dentro do vaso. - Eu. .. não o amo. Suas mãos espalmadas sobre o tampo da mesa. Com as extremidades dos dedos toco a pele fluida à altura dos pulsos, em direção às falanges (sobre a vitrina dos cigarros, acendem o abajur enfeitado com rótulos de White Label), toco a pele fluida, de leve, docemente, o gesto de quem tentasse afagar, sem enrugá-la, a superfície da água num recipiente, mas a água revolve-se, a carne revolve-se, sucedem-se fontes - secas, limosas - ruas esburacadas, pontes com parapeitos quebrados, casas desoladas margeando um lance de estrada de ferro, postes emaranhados de fios negros, fachadas de fábricas em ruínas, cheias de vidros poentos e partidos, lixo amontoado em terrenos baldios, canais infectos, jardins abandonados. Esquiva as mãos, devagar, de sob meus dedos. O gesto de tirar o lenço da bolsa e discretamente passá-lo sobre os olhos baixados. Através de que meandros, de que jogos de espelhos colocados no tempo a viu Bellini? - Desejaria saber por que a amo de um modo tão cortante. - Se não continuar a falar, tudo será mais fácil. (A voz de mudada, tensa, veia cheia de sal, a ponto de romper-se.) Peço que não procure ver-me. Também peço que não me acompanhe. Preciso ficar só. Não percebo se acrescenta uma despedida ou se a palavra adeus é o gesto de erguer-se e ir embora. Ondulam, à sua passagem, as leves cortinas brancas do bar. Sigo-a, rua de Vaugirard, ao longo do Luxemburgo já fechado. À distância, junto às grades negras e aguçadas, Roos parece menor. Quatro coroinhas, com batinas escarlates e sobrepelizes, sustendo um pálio negro com varas e ornatos dourados me ultrapassam, alcançam-na. Ela vai sob o pálio na estreita rua sem árvores e talvez devido à noite seu costume também parece haver escurecido. Continuam os relâmpagos, mais freqüentes e breves, acendendo as pontas amarelas das grades que limitam o Luxemburgo. Ouço um atroar compassado e longínquo de canhões. Sofreando o desejo de lambê-la como fazem as cadelas e as gatas com as suas crias, estaco ante a loja de objetos da década de 20, olho um instante as bonecas, as embalagens ingênuas, os cartazes (Rom Ste. Croix, Koniak I. Mate () AIOY), depois viro à esquerda e subo à casa dos Weigel. Recostado em travesseiros, o enfermo tenta respirar pela boca. Molhado de suor. Apesar de tudo, diz, sente frio. Suzanne abana-o com uma ventarola. Sinto, misturados, o cheiro de suor ardido e de sândalo. Julie, com uma tolha puída, procura enxugá-la. - Liév Nikoláievitch Míchkin... (Fala entrecortado. Sua voz apagada lembra-me uma corrente cheia de ferrugem, fazendo-se em pedaços sob a terra.) Definitivamente, a vida é um fardo grande demais para os homens. Viver, Nikoláievitch Míchkin, não será um crime? Nada é mais impotente e estático, sim, estático, que o nosso amor. Nosso amor não salva os outros. Antes... antes... pode condená-los. - Está vendo as coisas sombrias. Amanhã... - Não, não. Desde ontem, sinto-me clarividente, Liév Nikoláievitch. Veja essas duas. Suzanne aconselha-o: "Não fale. Fica pior quando se exalta." Pergunto: - Onde está sua mãe? - Foi deitar-se um pouco. Está exausta. - Veja essas duas. Que pode o meu amor fazer por elas? O amor não tem instrumentos. Tem os instrumentos do prazer. Nada mais. É um evento em si mesmo. Às vezes pode-se fazer correrem, para os seres a quem se ama, os rios da alegria e da fartura. Mas é por acaso. Seu amor, no fundo, não é responsável por isso. Deixo escapar, sem olhar para as irmãs, mas dirigindo-me a elas, e com dificuldade, como se também me faltasse o ar a mim: - Amo. E estou desesperado. Essa mulher, eu me precipito em direção a ela. Compreendem? Sou lançado, caio no emaranhado de coisas que a formam. Esbarramos em tantas sombras! Vocês duas, também, eu gostaria de desviar para vocês os rios. Mas quem pode fazer isto? Quem pode? O agonizante tem os olhos fechados. Ponho a mão no seu ombro. Sem erguer as pálpebras, prende-a um instante com força. A palma gélida, suada. Solta-a. Vou para a sala e tombo no sofá, junto ao abajur. Meus olhos ardem. No braço do móvel, um pedaço de seda ali deixado por Julie, cheio de exercícios de pontos: ponto de luva, pesponto, sobrecostura, costura dupla, ponto de bainha. Suzanne vem e senta-se a meu lado. "Acha que meu pai está morrendo?" "Não sei, talvez." "Não se preocupe. Você é mais desamparado do que nós." Olho seus cabelos, presos, como sempre, à altura das orelhas: "Acredito. Mas você não pode saber disso." "Posso. Eu sei." Confuso, passo a mão nos seus cabelos, num gesto protetor, um gesto arcaico. A trepidação distante da cidade parece fazer parte dos móveis, do solo, das paredes. O velho bandolim jaz de borco sobre uma poltrona.

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