UMA REDE NO AR - Os fios invisíveis da opressão em Avalovara, de Osman Lins

Leitura por Temas: O ROMANCE Avalovara é estruturado em oito temas, indicados pelas letras R, S, A, O, T, P, E, N, cuja origem é o palíndromo SATOR AREPO TENET OPERA ROTAS. Cada uma das letras é acompanhada de um título. A disposição dos oito títulos obedece à ordem da inscrição das letras no quadrado, conforme a incidência da espiral que lhe é superposta, gerando uma estrutura não seqüencial.

No agrupamento por temas, desconstruímos o entrelaçamento dos temas e os dispomos em ordem seqüencial, tema por tema, formando oito unidades, cada uma com seu desenvolvimento contínuo. Isso possibilita um tipo de leitura seletiva, já previsto pelo próprio autor.

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Você está em Leitura por temas » Tema A - Roos e as cidades [A19]

Abro a janela: o luar clareia uma das paredes e todas as luzes estão apagadas. As persianas abertas, volto a deitar-me. Cães eriçados se mexem sob a cama ou dentro das gavetas: ouço-os e sinto o cheiro de rabugem. Posso assumir o emprego no Recife ate 15 de julho; mas será difícil, com o dinheiro que me resta, protelar até então o regresso, mesmo em hotéis como este e comendo mal. Os meus dias aqui, portanto, terminam breve. Sabe Roos que regressarei, que estou de passagem e não lhe ocorreria abandonar o homem que morre em Lausanne; cruzar o Oceano; confiar a vida a mim, filho pouco hábil de uma região a seus olhos sáfara e inculta, embora fascinante: o fascínio de um animal subterrâneo. Ambígua, é exposta, não obstante o caráter enigmático do seu corpo, a desvalimentos e receios. Envolver-se com alguém em trânsito e curtir as conseqüências? Fecha a compreensão ao caráter sempre efêmero das fruições e encontros humanos. Afasta-se, portanto, como em definitivo, antes que a série iniciada se ordene e conclua-se, não importa se para desespero ou júbilo nosso. Entretanto, sua aversão ou não por mim, sua cegueira ou lucidez, tudo se submete às leis que comandam as nossas relações: este ir e voltar, este diagrama sinuoso. Deitado, a janela aberta ante a noite amena de junho enquanto a réstia do luar se move na parede do pátio, lamento a cena da tarde e a franqueza de Roos, cônscio de que isto não é ainda o fim (se bem o fim, inexorável, já se delineie) e de que nem mesmo o lamento é aqui arbitrário ou fortuito. Também Roos, sabe, de um modo qualquer, que o adeus do anoitecer nos conduz a nova seqüência da série. Estes cães sob a cama e nas gavetas, invisíveis a luz da madrugada que começa a entrar pela janela, fazem parte da seqüência. A mudança de quarto — sei — não impede que me sigam os cães. Mudo-me, porém, para o Hotel Ste. Marie, com janela para a rua Montparnasse. Volto pela madrugada, depois de bater bulevares e pontes que aos poucos tornam-se desertos, os pés insensíveis, um vazio no estômago, os músculos da espádua entorpecidos. Os cães se forarn. Vou à agência postal Rue de Rennes, retirar uma carta registrada e reencontro Roos. Expressões de cortesia, banais e vagas, enquanto soam carimbos e tilintam moedas. Mostro o cheque, vindo com a carta da Gorda. (“A pessoa que sabemos apareceu de novo aqui, dando a entender que você meteu-lhe o ferro. Será verdade, Abel?”) Roos prolonga a conversa trivial e dá sinais — discretos, embora — de que rever-me não a aflige. Aceita um licor? Olha o relógio: uma e pouco. Tomaria um café. Eu e ela, sentados nas cadeiras de espaldar como que rendado, protegidas por um toldo laranja. Ante nós, entre árvores, a estátua de Balzac, sob o céu azul. O diálogo prossegue com hiatos e, sem que nada importante tenha sido dito ou sugerido, ela se distancia no seu andar vagaroso, tão pouco parisiense, o andar de uma provinciana habituada a horas que se desdobram lentas, marcadas pelo sino de urn velho campanário, anos e anos, sobre os tetos tranqüilos. Eltville. Por que não combinar um encontro no qual lhe entregaria o fular que trouxe de Veneza? Saio no rastro de Roos, rápido. Não a alcanço. Desconto o cheque, volto para o quarto e rne curvo sobre os impressos de viagem. Estudo a tal ponto o mapa de Londres, que já não vejo apenas seu traçado e nomes — Kingsway, Oxford St., Green Park, River Thames -, mas a própria cidade, real e imaginária, construída no quarto, ao longo da tarde, com pedras, fotografias, gravuras antigas, páginas de romances, clichês, telegramas de jornais. A vã caçada na Itália e os dias subseqüentes fazem-me crer que não mais existe no mundo, com as suas três muralhas, incólume, a Cidade vista um dia (perto de mim e como situada à distância, pois não é muito maior que um vestido, e, tal um vestido bordado a ouro e pedras, mergulha na água calma e some) e que portanto acabaram as minhas buscas. A Cidade que surge instigando-me a encontrá-la e que tenho gravada no espírito, deve estar inserida, incrustada em ruas novas e novos quarteirões, emaranhada em outra. Posso cruzá-la e não a reconhecer. Lembro-me também de que muitas obras de arte existem, desmembradas, como o políptico de Masaccio realizado em Pisa, onde só chego a ver a figura de S.Paulo, a única que resta na cidade, indo encontrar o Calvário — isolado do conjunto — em Nápoles: santos e fragmentos do friso inferior acham-se em Berlim; em Londres, a Virgem e o Filho, com anjos músicos em torno. A ansiada Cidade pode ser, como este, um políptico disperso e se for eu nunca a encontrarei. Pelo menos, não a encontrarei de todo. Assim, se decido fazer uma rápida viagem a Londres, não é que espere ver no Tâmisa o rio da Cidade. Por um lado, desejaria reverenciar nas salas do Museu Britânico a coleção que ilustra e documenta o evoluir da escrita; por outro, impelem-me as leis pendulares, fundadas numa espécie de distorção de linhas e que regem minha aventura sem brilho com Anneliese Roos, sendo Londres e suas preciosidades gráficas em pedra, em argila, em metal, uma razão e um pretexto. O verdadeiro motivo da viagem encontra a sua justificação num inflexível jogo de alternâncias. O sol da manhã, refletindo-se nos vidros fronteiros, entra pela janela do quarto, filtrado na cortina de renda. Vou à estação do Norte e compro, via Calais, um bilhete para Londres. Por que no noturno de domingo? Não sei. Sábado à tarde, o telefone chama e suponho então ter a resposta. Roos me pergunta se não quero, domingo, ir com ela a Vincennes, aproveitar o bom tempo. Podemos antes almoçar na Aliança. Estarei de acordo? “Por que não ir a Chartres, Roos? Gostaria de rever os vitrais e examinar o relógio ao lado da catedral. Almoçamos lá, voltamos ao entardecer. Chegarei a tempo de pegar o trem.” “Que trem?” “O noturno para Londres.” Breve silêncio. “Ainda não conheço Chartres. Quando você regressar, podemos ir.” “E hoje, Roos?” Novo silêncio e a resposta. “Ficará no seu quarto, tem cartas a escrever. Amanhã, às 12, encontramo-nos no hall do restaurante?” Blusa negra de seda e saia musgo, de linho. Mangas compridas, presas com abotoaduras verdes, imitando trevos, idênticas aos brincos. Claros os calçados e a bolsa de alça longa. Um pulôver cinza à mão. Os cabelos sedosos, a pele repousada, as unhas polidas. Leve pintura, leve odor de loção: fragrância de violetas. “Então vai mesmo a Londres?” “Sim, hoje à noite. Via Calais.” Ao sairmos para o sol põe o chapéu de palha, um chapéu de abas flexíveis ornado com uma fita da mesma cor da saia. Para que o pulôver, quando faz calor e o ar está azul? Tomamos o metrô em Saint-Placide, rumo à estação do nosso destino, com seu nome augural: Porte Dorée. Calados, vamos pelo parque. 0 rosto pontilhado de sol, ela sorri por nada, sob o chapéu. Porta Dourada. Nós, dois animais terrestes, macho e fêmea, lado a lado entre árvores e aves, sob o céu que pende como um grande seio, um seio azul e branco, onde bebemos nossa ração de júbilo. Nós, nesta tarde de domingo, pausa ou arrefecimento das cobiças e atribulações, libertos de tudo que nos sobrecarrega o peito, flutuando sobre a relva como se nos dias precedentes, não nos seis, mas nos cinqüenta e seis, houvéssernos gerado, em canseiras e ânsias, o instante que vivemos. O sol faz-se lâminas entre as folhas. Re — nos milhões de folhas — flete-se. A luz, sobre o lago e as margens, espraia-se ondulante e não quero saber onde ficam seus limites. Peixes, vamos bebendo-a com a boca e os olhos, com as narinas e a pele, talvez com os sexos. Homens e mulheres, deitados na grama ao sol ou sob as árvores, remando ou deixando-se levar pelos barcos, andando ou parados nos caminhos, nos fazem companhia. Embala-os as rnesmas certezas que a mim? Nós perto do lago, reclinados. O som de uma pequena orquestra encrespa a superfície da água. Homens nus da cintura para cima, alguns com chapéus ou com tatuagens, meio deitados, de frente para o lago. As águas crepitam, com um rumor de folhas secas pisadas ou revolvidas sem cessar pela brisa. Dou a Roos o fular trazido de Veneza: um grifo cercado de borboletas e feito de seres estranhos. Cada uma das patas é um leque de pássaros; as unhas, seus bicos. Os pássaros das patas dianteiras saem do ânus de um símio; e os das patas traseiras das bocas de animais sem corpo. Lobos, cavalos, leoas, aves, pequenos monstros e a cara de um velho semeIhante a Esopo, entrelaçados, rnuitos com a cabeça dentro da boca de outro. A cauda de um lobo é tambérn a do grifo. No extremo da cauda, incrustados num penacho, dois personagens idênticos, mulher e homem. Conversam? Toda essa zoologia como que não cabe no corpo da besta fabulosa e assim e que se vêem no ar as patas traseiras de mais dois animais, as cabeças plantadas como flechas a meia altura da sua espinha: o provido de cauda (entre cão e gazela) cobre o outro (cão com cabeça de iguana). A cauda da gazela-cão (ou cão-gazela-flecha?), felpuda, termina em cabeça, com língua de víbora. O grifo tem chifres à feição de asas ou de barbatanas. Seu bico e olhos são aquilinos, bico e olhos agudos. O original, armênio, remonta ao ciclo das grandes descobertas e talvez lhes seja anterior. Roos, sorrindo, agradece e põe com gestos lentos o lenço no pescoço. Entre a pele e a blusa negra, movem-se as cores da besta e das borboletas. Irá a Veneza, um dia. La, é tão belo como no cinema? Ruas de água, avenidas aquáticas, todas ladeadas de palácios... Respondo que a Biblioteca Marciana também é fascinante. Sai-se da praça cheia de pombos e entra-se nas salas povoadas de incunábulos e códices. — Alguns desses livros são misteriosos. Não escolhi ao acaso o seu fular. O desenho central lembra um poema. Um poema bem estranho. Requisitei uma Odisséia aldina e um manuscrito egípcio, em grego. Não sei grego. Queria vê-lo, apenas. Veio o livro de Aldo Manucci. No lugar do outro, por engano, trouxeram-me a versão grega de um poema místico. A apresentação em italiano dá as características do texto. Seu fundo é a espiral. Um dos temas, a busca do Nome. O autor consagra a obra ao Unicórnio. Roos retira o fular do pescoço, olha-o com expressão indecifrável e depois estende-o sobre os ombros. Descalça as meias de náilon, ergue a saia, expõe as coxas ao sol. Vejo o azul brando das veias — rios — sob a pele.

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