UMA REDE NO AR - Os fios invisíveis da opressão em Avalovara, de Osman Lins

Leitura por Temas: O ROMANCE Avalovara é estruturado em oito temas, indicados pelas letras R, S, A, O, T, P, E, N, cuja origem é o palíndromo SATOR AREPO TENET OPERA ROTAS. Cada uma das letras é acompanhada de um título. A disposição dos oito títulos obedece à ordem da inscrição das letras no quadrado, conforme a incidência da espiral que lhe é superposta, gerando uma estrutura não seqüencial.

No agrupamento por temas, desconstruímos o entrelaçamento dos temas e os dispomos em ordem seqüencial, tema por tema, formando oito unidades, cada uma com seu desenvolvimento contínuo. Isso possibilita um tipo de leitura seletiva, já previsto pelo próprio autor.

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Você está em Leitura por temas » Tema A - Roos e as cidades [A20]

Minha cabeça nos rios azuis de Roos. Sorvo a tepidez das suas coxas, vejo o Sol no alto e o seu belo rosto entre ramagens, fito-a, sinto-a, ouço-a, e com fruir estes favores me movo desdobrado em rios numerosos — quais?, o Reno?, o Ródano?, o Arno?, o Meno?, o Elba?, o Ebro?, o Tejo, o Tigre?, o Guadalquivir? Pousam junto a nós e esvoaçam, aos pares, pássaros cujo nome, estrangeiro, me escapa. Roos olha-os de relance: a impenetrável e tensa expressão surpreendida em Amboise. Aparenta-se aos seres do ar? Afagame a testa. Percebo em sua mão um frêmito de asas e o pulsar, o pulsar, de um coração de pássaro. Comerciários, estudantes, pajens, tomam refrigerantes nas pequenas mesas de metal ou dançam. Balões de ar presos por um fio nos cabelos e na alça dos vestidos de várias dançarinas. Suspensas por esses globos de cor, as leves sombras adejam, alongadas, no solo e entre as sombras das árvores — e eu, a meu lado um cordeiro parido pelo vento, vejo-me em Roos, habito sua carne intemporal. Nos arredores desta nova cidade que descubro, uma das tantas encontráveis em Roos e, como as demais, deserta, ressoam as rnúsicas que ela e eu dançamos abraçados. Abrasados, diria? Surgem, ao sol, quarteirões de aspecto neutro, salpicados de pavilhões de caça. Tendo o alvo cordeiro no meu rastro, cruzo um fosso inundável, mas inundado tão-só de margaridas, e, em seguida, as muralhas, com torreões e ameias sem qualquer ocupante, dispostos de maneira regular. (O grifo e as flores do fular em torno do pescoço de Roos rugem e giram.) O caminho, largo, de pedras ovais, leva diretamente à Porta em cedro e ferro; nas duas faces, baixos-relevos de bronze, representando cenas de batalha. E a entrada cerimonial da cidade, que agora descortino. Domina-a, de um lado, o palácio, onde a relativa nudez das partes baixas contrasta as enfestas eriçadas de lucarnas, mirantes, agulhas, colunelas, chaminés e domos; de outro, a igreja, coberta por hemisférios nitentes, pousados sobre colunas de pórfiro e serpentina verde. Em torno da igreja, edifícios luxuosos, com o Batistério, onde brilham mosaicos de inspiração bizantina. — Não é a imponência das construções o que mais deslumbra na cidade ao contrário de outras, não me diz seu nome — e sim a harmonia. O desenho do Hipódromo, as cumeeiras visíveis no horizonte, as casas que subindo os cômoros chegam até as muralhas, bem como os pomares e espaços verdes entre os edifícios, tudo parece obedecer a um espírito clarividente e capaz de variações felizes. (Saímos do baile. A música, a dança, o calor, a luz da tarde, a presença ingênua e despreocupada do povo entre as árvores e a beira do lago. Acompanha-nos o anho.) Em muitas casas há um pátio com fonte e diversas abrigam terraços floridos. Esculturas de heróis dão um ar solene às praças. Recobrem as paredes da igreja, na parte inferior, placas de mármore de várias cores; sobre elas, mosaicos em azul e cinza. (Não temos copo e bebemos nosso vinho na garrafa. “Conhece Dáfnis e Cloé?” O cordeiro deitou-se a nosso lado, tilintam seus guizos.) Outras grandes figuras do mosaico, representando golfinhos, tritões, pavões e pombos brilham na abside e no forro. Dois tronos, urn marchetado de ametistas, outro de topázios, ladeiam o altar, esculpido em madeira e recoberto de ouro. Não longe daí, a caminho do Palácio, o edifício do Senado, baixo e de aspecto digno, tendo à frente duas colunas salomônicas, rematadas por uma estátua eqüestre. No vestíbulo, um touro de pedra em luta com sete leopardos de pedra. Mobiliário severo mas delicadamente lavrado, quase sempre com incrustações de nácar. (Canta uma cigarra? Imagino-a? Se canta, por que não voa, como no romance grego, dos ramos onde uma ave pode descobrí-la e vem esconder-se entre os seios de Roos? Por que não se põe a cantar nesses verões? Eu a apanharia sob a blusa negra). No solo, mármores dispostos em desenhos geométricos e alfombras tecidas com capricho. As janelas, sem vidros, protegem-nas cortinas de brocado ou delgadas placas de alabastro. Forte muralha rodeia o palácio, o Recinto do Rei, uma cidade dentro da cidade, com pavilhões e salas, vivendas, banhos biblioteca e igreja, quartel e oficinas, um cárcere, uma tecelagem, entre hortas, jardins, pequenos lagos e terraços dispostos com ciência: neles se pode receber o sol e contemplar o exterior. Além disto, largas arcadas permitem-me continuar protegido do sol ao passar de uma sala para outra. No silêncio, as delicadas unhas do cordeiro soam como pisadas de potro. (Entramos num parque de diversoes. Roos, despenteada, as fontes porejadas de suor, as mangas da blusa dobradas a altura dos cotovelos, leves manchas rosadas no rosto e até nos braços.) Na sala central do Palácio vejo o trono, vazio, rodeado de leões dourados e árvores de prata, com pássaros de pedras preciosas cantando eternamente nos seus ramos. O cordeiro estremece e afastase balindo: numa dessas árvores, há uma serpente verdadeira. Seguimos de mãos dadas, Roos cantando em voz baixa uma romança do Reno, a fita e as abas do chapéu aflando, as passadas largas. Normalmente, seu andar é outro, comedido. Giramos na montanha-russa, e, tal como um dia, em Chambord, em meio ao ruído de inúmeros motores de dois tempos, brado o seu nome, brado o seu nome em círculo e o sorn das vogais ondula com a ondulação das cadeiras sobre os trilhos. Subimos na roda-gigante, vemos os telhados, os horizontes, o mundo, com ambas as mãos ela ergue o fular, o grito fantástico e as flores voam sobre nossas cabeças, encho os pulmões de ar e pronuncio Roos, lentamente, Roos, o nome forma agora um círculo na vertical, a roda se engalana com as flâmulas, os nastros e as guirlandas do R, do 0, do 0, do S, e de súbito, no alto, o chapéu de Roos desprende-se, regira entre os raios da roda-gigante, é erguido pelo vento e levado para longe com a longa fita verde. Agora estamos numa brasserie silenciosa, entre o Quai aux Fleurs e a rue du Gloltre Notre-Dame (somos, nesta hora, os únicos clientes e o garçom usa sapatos com sola de borracha). O piso, revestido de pastilhas claras, cheira a cera de assoalho fresca. A mão esquerda de Roos repousa sobre a toalha vermelha. Tomo-a entre as minhas. Esvaiu-se o odor de violetas — e a outra Roos, a de Vincennes, parece haver fugido, perdida em quem sabe que invisível naufrágio, com os rumores, e a luz, e a ebriez da tarde, também findos. Como trazê-la de volta? — Roos...Nunca vimos o quarto nem o país do outro. Conhecemo-nos como soltos no mundo. Não sei que perfume têm seus vestidos no armário; de que modo arruma seus esmaltes, suas loções, seus cremes, que cor têm seu roupão de banho e em que posição ficam as sandálias, quando as descalça na hora de dormir. Muito menos sei como é o seu pai e em que trabalha. Se o sol, em Eltville, entra na janela do seu quarto pela manhã ou à tarde; se há, na vizinhança, algum pássaro ou cão que você ouça; se detesta o cão, se ama o pássaro. O garçom se aproxima, silente, com a travessa de almôndegas e vinho. Ela descreve, no seu francês literário, o quarto que ocupa na Aliança, enumera seus discos e seus livros, fala da paisagem renana e das roupas que usava aos quinze anos. Através da porta envidraçada, vejo de relance a cúpula do Pantheon, sob a luz violácea do entardecer, o jardim atrás de Notre-Dame e uma grande árvore do outro lado da rua, junto ao Sena. Vasilhas de cobre polido, nas paredes, refletem esse clarão e os mesmos reflexos arroxeados parecem estriar a voz de Roos: — Você dizia nada saber do meu quarto. Também não sabe que homem é meu marido e de que se ocupava. E uma espécie de arqueólogo. Seu campo de ação, os naufrágios antigos. Quando adoeceu, estava justamente explorando urn navio afundado nas costas da SicIlia. Sabe há quantos anos? Mil e trezentos. É incrível o que se pode estudar em um barco sepultado há mil, há dois mil anos. A arte da construção naval, as rotas marítimas, o tipo de comércio existente entre um país e outro. Aquele navio transportava uma carga de capitéis e frisos em mármore do Proconeso. Ia a caminho de alguma cidade em construção, possivelmente no Norte da Africa. Vinha de Constantinopla. O cofre do capitão estava intacto. Nada saberíamos dele e do seu navio se não fosse aquela tempestade. Era um sírio e tinha duas filhas. Vai-se a nossa tarde venturosa. Qual a sua duração real? A nau sob o mar, nas costas da Sicilia. As jovens filhas do capitão sírio. — Roos, estas últimas horas!... Acha que podemos ser felizes ante coisas cujo fim sabemos próximo? Seu rosto pensativo, voltado para fora, para o céu que escurece. As cidades nela transubstanciadas vão e vêm como ondas, todas parecendo noturnas e outonais. — Sim, talvez. Quem sabe?... Eu e ela abraçados, pelo Quai aux Fleurs. Vamos depressa e isto reacende a sua exaltação. “Tinha esquecido a viagem. Que pena você ir! Quantos minutos faltam para o trem?” Barcos já iluminados perlongam o Sena, com excursionistas. Alguns respondem aos nossos acenos. Grito do cais, junto a não sei que ponte, para o barco que passa e para a estátua eqüestre, do outro lado do rio, frente ao Hotel de Ville: “J’aime cette femme, it is my love, her name is Rose. Rose!” Faço com os braços desabrochar uma rosa, grande como a noite que nasce. Toma-me pela mão e incita-me, rindo, a andar mais depressa. Meio extraviados entre as barracas de flores, não descobrimos logo as luzes amarelas do metropolitano. Deixo-a na frente do Dupontparnasse à espera de um táxi, corro para o hotel, subo de três em três degraus a escada, desço aos saltos, bébado de vinho e de alegria. Espera-me no carro. Sem fôlego, sento-me a seu lado, mando tocar para a Estação do Norte. Não retira as mãos das minhas: pressiona-as. Jatos de luz, vindos das vitrinas, das lâmpadas da rua e de outros automóveis projetam-se pelas janelas do táxi, cruzarn-se sobre o seu rosto, sobre as cem cidades do seu rosto. E se o trem houver partido? Voltaremos, ela subirá comigo, verá meu quarto do Hotel Ste. Marie, ajudará a repor nos seus lugares roupa e objetos, animará a cortina, as poltronas, as paredes, o piso e o teto corn a sua presença, e quem sabe o que acontecerá? Não devo ir. Este é o dia, o momento que tanto ambiciono. Corremos através dos passageiros, o grifo do fular comendo as flores: ruge, ladra, brame e canta feito pássaro. Os avisos que antecedem a partida já ecoam por entre esses ruídos. — Adeus. Mande um cartão postal. — Roos... Fui feliz esta tarde! Sinto-me como se estivesse dentro de um tambor. Urn tambor ressoante. Como se me cercasse um ritrno. Um rufar. 0 tambor. Segura-me os dois braços e, pela primeira vez, pela primeira vez, beija-me no rosto. Oferece o rosto para que eu retribua. Beijo-a na boca. Parte o trem. Corro. Parte o trem. Ela acena com o bicho cercado de borboletas.

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