UMA REDE NO AR - Os fios invisíveis da opressão em Avalovara, de Osman Lins

Leitura por Temas: O ROMANCE Avalovara é estruturado em oito temas, indicados pelas letras R, S, A, O, T, P, E, N, cuja origem é o palíndromo SATOR AREPO TENET OPERA ROTAS. Cada uma das letras é acompanhada de um título. A disposição dos oito títulos obedece à ordem da inscrição das letras no quadrado, conforme a incidência da espiral que lhe é superposta, gerando uma estrutura não seqüencial.

No agrupamento por temas, desconstruímos o entrelaçamento dos temas e os dispomos em ordem seqüencial, tema por tema, formando oito unidades, cada uma com seu desenvolvimento contínuo. Isso possibilita um tipo de leitura seletiva, já previsto pelo próprio autor.

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Você está em Leitura por temas » Tema A - Roos e as cidades [A13]

Perlongo o Boulevard Raspail e continuo andando, a esmo, só sabendo onde estou ao ler as placas - Boulevard Saint-Jacques, Place d'ltalie, Quai d'Austerlitz. Passa pouco das três, mas o céu encoberto faz parecer mais tarde, o vento fere-me os olhos e nem sequer a visão do Sena sob as pontes me acalma. Volto, exausto e sem objetivo, um vácuo no estômago. Quando introduzo a chave na ranhura, o telefone começa a tilintar e silencia antes que eu possa atender. Ligo para o quarto de Roos: não respondem. Havendo deixado, num envelope com seu nome, dois olhos de vidro comprados não me lembro se em Antuérpia ou Gand, querendo significar que nada me interessa ver na sua ausência, desço para examinar se foram retirados: continuam no grande quadro de madeira entre o primeiro andar e o térreo. Torno a subir, desfaço a mala, ordeno as coisas no quarto, alteradas com os oito dias de viagem e conto até as moedas que me restam. Quantas semanas posso ainda ficar e quantas cidades verei? Examino o calendário: 10 de maio. Dez? Que houve nesta data? Não consigo lembrar-me. Folheio distraído alguns livros, encontro um texto de Paladio a respeito de Chambord. No centro do castelo, afirma o arquiteto, há uma escadaria em quatro lances, com quatro entradas, servindo quatro dependências, com as rampas subindo umas sobre as outras, sem nunca se encontrarem. Todos os dados estão corretos, sim, menos o número de lances. Paladio, um espírito exato e objetivo, aumenta para quatro, transformando-as numa invenção mais complexa, as escadas duplas de Chambord! Marco a passagem no livro e me lembro: no dia em que completa dezenove anos, a 10 de maio de 1954, meu irmão Augusto ganha o mundo e nunca mais dá notícias. Seria esporeado por uma agitação parecida com a minha? Por que nunca me falou? Seremos todos nós, filhos da Gorda, propensos às buscas, aos erros, aos desastres? Saio outra vez, tomo a direção da rua Guynemer, faço uma visita aos Weigel. O chefe da família está de cama há quase sete anos. Suponho-o de baixa estatura, embora sempre o veja deitado. Como não ouve bem, exige que me sente junto ao leito. Chama-me, ninguém sabe por que, talvez por causa da barba cor de ferrugem, Liév Nikoláievitch Míchkin, fitando-me com seus olhos ligeiramente estrábicos. Quando está melhor, como neste fim de tarde, seu assunto são os grandes prosadores russos. Então emociona-se e passa as mãos na calva, com insistência. Imita, segundo creio, o linguajar dos heróis dostoievskianos: "Como está o senhor? Hein? Sente-se bem? Parece que está pálido. Acha que cheguei ao fim? Tome alguma bebida. Faz bem com este frio. (Apesar da calefação, sempre acha que faz frio. Talvez se imagine em São Petersburgo.) Vejo-me hoje com uma disposição espantosa. Não, nada do que eu disse é verdade. Tudo passa e logo serei julgado pelos meus crimes. O senhor, Liév Nikoláievitch Míchkin, não sabe que coisa é a velhice. Procuremos entender-nos. Que significa tudo isto?" A mulher vem sentar-se ao nosso lado: esquálida, com os joelhos afastados e os pés sob a cadeira, cruzados. As mãos repousando no vazio entre os joelhos, inclina a cabeça um pouco para trás e, ao passo que observa o marido, critica-o, quase sem descerrar os lábios, para que ele não se aperceba das censuras: "Que insensato, meu Deus! Quando melhora, em vez de descansar, fica dizendo tolices. Cala a boca, pobre louco." E dirigindo-se a mim: "Não sei como o senhor suporta tudo isto." Há sempre um bandolim na sala, ocupando uma poltrona. Fino instrumento, faz-me evocar o que pertence à minha irmã Leonor (por que não o levou para o convento?) e que se desfaz em algum armário do chalé, com a viola de Mauro e a flauta de Eurílio, varado de balas num bordel do Recife. O instrumento de mme. Weigel também já não serve para nada: ela tocava-o quando jovem e o meu interesse vem dessa circunstância. Mantenho-o, às vezes, no colo - este mudo sobrevivente de mais alegres dias -, como se amparasse coisas baldas e mortas, enquanto converso com as duas filhas do casal. Julie tem vinte e um anos. Frágil e sossegada, fala devagar, anda devagar e raciocina devagar, embora com precisão. Seu rosto miúdo, redondo, adquire uma pureza extrema quando, partindo os lisos cabelos ao meio e penteandoos sobre as orelhas, prende-os na nuca. Admiro suas mãos, delicadas e leves, não obstante as unhas curtas e sempre um pouco escurecidas pela fuligem que faz parte de Paris. Ganha algum dinheiro desenhando e costurando roupas de bonecas. Só um temperamento como o seu poderia fazer, com tanta minúcia e perfeição, vestidos que na maior parte das vezes não chegam a ter um palmo. Suzanne, quatro ou cinco anos mais jovem, parece haver acumulado a energia e a impaciência que moderadamente encontramos em Julie. Suas feições, não tão puras quanto as da irmã, atraem-me pela vivacidade e por qualquer coisa de franco e generoso que leio nos seus olhos, um pouco afastados entre si. Sua voz é grave e, quando fala ou ri, estende um pouco para a frente o lábio superior. Esse hábito e o seu penteado preferido (abre os cabelos na nuca, atando-os em duas vassourinhas castanhas à altura das orelhas) dão-lhe um ar tão infantil que chega a ser comovente. Pensa-se que está destinada à desilusão e ao esmagamento. Sentadas juntas, no antigo sofá recoberto de damasco cor de musgo, fruem agora um momento de sossego neste segundo andar há sete anos habitado pela doença do velho. Suzanne põe o livro de lado, Julie suspende a costura. Falam-me em voz baixa, como se o pai, apesar de meio surdo, pudesse ouvi-las da cama. Por que estou tão pálido? Doente? Gratas pelo cartão que mandei de Bruxelas. E a viagem? Por que nunca mais as visitei? Escurece. Suzanne acende a luz do abajur, num alto pé de latão. Julie levanta-se, serve-me um conhaque. Sol no canavial. Liév Nikoláievitch Míchkin, você é um inútil. O mundo explode. Pássaros vermelhos nas janelas, sobre o abajur, sobre as mãos de Suzanne e os ombros de Julie. São Petersburgo. Por que custo tanto a amadurecer? Deve-se amadurecer? Gaivotas fuliginosas. Pobre insensato! Cidades vindo à deriva, num mar fosforescente ou pelos ares. Que procura você? Desperto. Apagado o abajur, a casa em silêncio. Levanto-me sem fazer rumor e vou embora. Ao passar ante o quadro da correspondência, observo que o envelope destinado a Roos foi retirado. Mas acaso se esquiva? Não a vejo. Faço devagar as refeições e me demoro após a sobremesa. O resto do tempo, nesse fim de semana, fico no quarto. Por que não me chama? Escuto apodrecerem as laranjas e as maçãs, fugirem os pregos lentamente das tábuas, distenderem-se as molas do colchão, enrugar-se o lençol, estalar o assoalho, crescerme a barba, as unhas e os cabelos, o óleo escorrer nas dobradiças da porta, o canivete perdendo o fio, meu sangue circulando e o ar mudando de posição no quarto. Ouço tudo, menos o telefone. Um pássaro escuro, de bico recurvo, entra várias vezes no quarto, pousa na mesa e fitame, olhos de rapinante, as asas meio abertas. Desaparece em seguida.

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