UMA REDE NO AR - Os fios invisíveis da opressão em Avalovara, de Osman Lins

Leitura por Temas: O ROMANCE Avalovara é estruturado em oito temas, indicados pelas letras R, S, A, O, T, P, E, N, cuja origem é o palíndromo SATOR AREPO TENET OPERA ROTAS. Cada uma das letras é acompanhada de um título. A disposição dos oito títulos obedece à ordem da inscrição das letras no quadrado, conforme a incidência da espiral que lhe é superposta, gerando uma estrutura não seqüencial.

No agrupamento por temas, desconstruímos o entrelaçamento dos temas e os dispomos em ordem seqüencial, tema por tema, formando oito unidades, cada uma com seu desenvolvimento contínuo. Isso possibilita um tipo de leitura seletiva, já previsto pelo próprio autor.

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Você está em Leitura por temas » Tema A - Roos e as cidades [A6]

Estamos em Amboise e os participantes da excursão se dispersam. Se, ao invés de pôr-me a vaguear nas imediações do castelo, estimulado pelo frio deste meio-dia luminoso, eu me dirigir ao restaurante, nunca verei realmente Anneliese Roos. Voltando-me, como faço, para a esquerda, e não para a direita, enveredo por uma das encruzilhadas possíveis do meu destino e enredo-me, de maneira inapelável, nas tramas da sua beleza - ou da sua magia. Escolheria, acaso, rumo diferente, ainda que o encontro com Roas me levasse à morte? Nas espáduas um casaco azul-marinho que realça a alvura do seu colo e o amarelo-canário do suéter. A saia cinza atenua esse contraste de cores. Favorecida ainda pelos ondulantes verdes das elevações e o azul desmaiado do céu na linha do horizonte, sustém Roos um ramalhete à altura do queixo, como se aspirasse o seu perfume, conquanto só a rosa, fresca e vermelha, tenha algum para mim: serão também olorosos as papoulas e os gerânios? As flores refratam suas púrpuras no rosto de Roos, que me parece invulgarmente vívido em sua meditação. Receio perturbar, aproximando-me, a feliz conjunção de cores, linhas e volumes. Sobressai, no centro da paisagem ensolarada, a figura solitária de Anneliese Roos, como, nos museus, certas obras de preço, colocadas longe das demais, de modo a serem contempladas em sua integridade, sem dividir com outra, com nenhuma, o espanto do observador. Sei, no entanto, que ela em breve será abordada, sairá do lugar ou moverá o braço. Baixando a mão, olha-me, desvia o olhar e distancia-se, alguns passos. Sigo-a e com sintaxe escolar digo não saber qual merece contemplação mais prolongada ou atenta: se ela ou a rosa que tem entre as mãos. O vocabulário precioso torna a frase impessoal. Apenas deixando entrever que me ouve, e imitando, no seu andar vagaroso, a cadência dos versos, Anneliese Roos começa a declamar num tom de salmodia: La Rose est te, charme des yeux. C’est la Reine qes fleurs dans les printemps écloses. Vejo, num relance, sem neles prender a atenção, tetos cinza-rubros e noto que um sino começa a bater. Pensar que tantas vezes, à mesa do refeitório, falamos da questão de Suez e de como chove em Paris, quando ela é capaz de repetir sem erro versos de Anacreonte! Movido pelo interesse que de mim se apodera, evoco, eu também, outro fragmento do poeta, proclamando talvez a súmula deste curto instante, quando Anneliese Roos, distante, não reencontrável - aprisionada numa juventude imune aos carunchos do tempo -, emitir, sugerida num texto, o seu halo: Sa vieillesse même est aimable, Puis qu' elle y conserve toujours La même odeur qu' aux premiers jours. Assim, a sombra de um lírico grego, vertido para uma língua que não é a de Goethe nem a de Camões por um tradutor do século XVIII, lido por mim numa edição de mil setecentos e tantos cheirando a fumo e a vestidos velhos, em voz alta, junto à cisterna do chalé, enquanto soam apagados os risos da Gorda e as vozes dos meus vários irmãos, fala pelas nossas bocas a dois milênios e meio de distância e estabelece entre nós um liame provisório, mas, não frágil.

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