UMA REDE NO AR - Os fios invisíveis da opressão em Avalovara, de Osman Lins

Leitura por Temas: O ROMANCE Avalovara é estruturado em oito temas, indicados pelas letras R, S, A, O, T, P, E, N, cuja origem é o palíndromo SATOR AREPO TENET OPERA ROTAS. Cada uma das letras é acompanhada de um título. A disposição dos oito títulos obedece à ordem da inscrição das letras no quadrado, conforme a incidência da espiral que lhe é superposta, gerando uma estrutura não seqüencial.

No agrupamento por temas, desconstruímos o entrelaçamento dos temas e os dispomos em ordem seqüencial, tema por tema, formando oito unidades, cada uma com seu desenvolvimento contínuo. Isso possibilita um tipo de leitura seletiva, já previsto pelo próprio autor.

Imprimir tudo    Voltar

Você está em Leitura por temas » Tema A - Roos e as cidades [A10]

Bonés de ferroviários, chapéus masculinos, gorros numerados de carregadores, cabeleiras soltas de mulheres, Anelise Roos está no Hotel Beethoven, frases incompreesíveis cruzam-se, entrego a bagagem no depósito, saio para a tarde frígida e ainda clara. Beethovenhotel, Beethovenstraat, 49. Estudo no mapa de Amsterdam o percurso dos transportes urbanos, tomo um bonde e vou acompanhando as suas voltas, com os olhos no mapa e nas placas das ruas – essas constelações que confirmam a indicação do mapa -, atravesso jardins e quarteiões sempre mais próximos do meu destino, avanço, simultaneamente, através de uma cidade e de uma língua que desconheço, e de súbito, em letras luminosas, verdes, o nome do hotel. Ainda não voltou da MACROPACK. Deixo um cartão, agora tomo um táxi, volto à estação, apanho a mala, hospedo-me no primeiro hotel que encontro. A voz de Roos, vindo até mim através dos canais ladeados de olmos, das igrejas, dos estabelecimentos bancários, das oficinas de lapidação de diamantes: - É você mesmo? Não pensei que viesse. - Jantamos juntos? - Esta noite, sim, estou livre. Não é sempre que posso sair. Sabe? Trabalha-se até tarde na Exposição. À porta do Chevalier d'Or, uma armadura dourada, o elmo descido: um cruzado irresoluto, extraviado entre os clientes, que entram salpicados de chuva. Ecoam as vozes de um lado a outro do salão, intraduzíveis. Soariam deste modo as vozes dos invasores - Joost van Trappen ou Caspar van der Ley -, os militares e mercadores flamengos que aportam a Pernambuco no século XVII? Roos, num vestido cinza de lã, o colo abrigado em um lenço amarelo, dirige-se ao garçom e eu não sei qual das palavras que diz corresponde ao peixe, aos legumes, ao vinho. Isolado, ilha idiomática comum, ouço-a e -procurando termos precisos - conto-lhe a viagem, atento ao modo como a sua pele, tecido brando e, em certo sentido, ilusório, absorve a claridade. As lâmpadas, o reflexo no metal da baixela, o vinho aromático - tão dourado quanto a armadura -, tudo parece instigar-nos a expansões. Fala-me Roos (de mapas e tesouros?) no seu francês composto e neutro e, da mesma forma que os pavões ostentam as cores da cauda, logo ocultando-as, as abriga - todas radiosas nesta noite em que, extasiado, esqueço o peso do mundo - tornam-se visíveis, sem que ela interrompa a frase iniciada e sem que gesto algum me autorize a concluir que a revelação é voluntária. Vestimos os casacos, apertamos a manopla oca da armadura, saímos e logo compreendo que os ruídos e as cintilações do salão falam por nós. As lâmpadas, do alto dos postes, refletem-se nas ruas molhadas e nós vamos lado a lado, trocando frases banais. Grandes coroas de flores postas nos passeios -nomes de fuzilados nas fitas ainda úmidas da chuva - alternam-se com bicicletas estacionadas. “Pode tomar meu braço, Roos." Vívida impressão de que o cortejo nos segue, invisível - mas o tênue e compassado rumor dos nossos passos dissolve-se no silêncio. "Você escreve, Abel?" "Sim. Mas publiquei tão pouco até hoje! Um ou dois contos. Só. E já tenho quase vinte e oito anos. Sou dos que custam a amadurecer e talvez não amadureça nunca. Sinto e ajo como se tivesse vinte ou vinte e um anos. Creio que já era tempo de ter escrito alguma coisa válida." Um vento inesperado traz o som de vozes, homens cantando. Marinheiros bêbados? Os caixilhos brancos das janelas, as pardacentas fachadas realçando as molduras. Todas as luzes apagadas nos interiores. O leve, o alado peso do seu braço no meu. Qualquer coisa de íntimo nesta confiança, mas a pressão, de tão leve, preocupa-me, é como se o braço estivesse suspenso por pássaros em vôo. Sinto gerar-se a fuga e finjo ignorá-la: um gesto precipitará o fim. "Não sei se amanhã posso livrar-me da MACROPACK. De qualquer modo, se puder, será somente à noite. Telefonarei." Já estamos próximos ao seu Hotel. O passeio termina e talvez só em Paris eu volte a encontrá-la. Nossas palavras tomam-se mais raras, mais surdas, mais lentos nossos passos. - Roos, amo-a. Detemo-nos. Seu rosto, claro como se o luar o iluminas-se, volta-se para mim. Pela primeira vez, com leveza idêntica à do seu braço no meu, beijo-a. Ouço um rufar de tambor, é um grande tambor, surge do chão brilhante o cortejo invisível que nos segue, um estandarte sangüíneo ondulando entre lanças de metal sobre os chapéus de feltro cônicos, de abas amplas, um clarão (vindo de Roos?) põe em relevo os rostos vivos dos homens, ornados com perucas que descem até os ombros, destaca as golas engomadas e lisas, as vestes da mulher que se insinua entre eles, a caixa do tambor e, principalmente, o ataviado personagem que vem à testa da ronda. Lanças entrechocam-se, avulta o bater ritmado do tambor, esse rataplã nas ladeiras de Olinda, cada vez mais próximo o tropel das botas com polainas de batista, vozes, risos, risadas, barulho de colares, estalar de línguas, roçar de tecidos, somos atravessados como a própria rua pelos homens, pela mulher que os segue, os tambores vibram em nossos flancos, o estrépito das botas (o mesmo que estremece as paredes do Recife) repercute forte em nossos pés, o latejar dos seus sangues pulsa em nós e ouvimos sobre nossas cabeças descobertas o adejar do imenso estandarte cor de vinho.

© Copyright 2012 - UMA REDE NO AR :: Os Fios Invisíveis da Opressão em Avalovara, de Osman Lins. All rights reserved.

Centro Universitário Ritter dos Reis - Rua Orfanatrófio, 555 - Cep: 90840-440 - Porto Alegre/RS - Brasil | Telefone: +55 (51) 3230.3333