UMA REDE NO AR - Os fios invisíveis da opressão em Avalovara, de Osman Lins

Leitura por Temas: O ROMANCE Avalovara é estruturado em oito temas, indicados pelas letras R, S, A, O, T, P, E, N, cuja origem é o palíndromo SATOR AREPO TENET OPERA ROTAS. Cada uma das letras é acompanhada de um título. A disposição dos oito títulos obedece à ordem da inscrição das letras no quadrado, conforme a incidência da espiral que lhe é superposta, gerando uma estrutura não seqüencial.

No agrupamento por temas, desconstruímos o entrelaçamento dos temas e os dispomos em ordem seqüencial, tema por tema, formando oito unidades, cada uma com seu desenvolvimento contínuo. Isso possibilita um tipo de leitura seletiva, já previsto pelo próprio autor.

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Você está em Leitura por temas » Tema A - Roos e as cidades [A16]

Compramos nossos bilhetes (eu para Verona, ela de volta a Paris) e ficamos um momento no alto da imensa escadaria, absortos, olhando o ir e vir das pessoas nos degraus. Ruídos de locomotivas, distantes sons de sereia na Piazza Duca d'Aosta, gritos agudos de aves nos portões, no restaurante, nas passagens subterrâneas, no guichê de informações, nos lavatórios, nas cabines telefônicas. De procelárias? Restam-nos apenas vinte e dois minutos, o ar está frio e nós cansados, refugiamo-nos no salão de espera. Nossa excursão dominical nos lagos: vento gelado, chuva e águas agitadas. Atravessamos sem palavras os salões do palácio Borromeu, sapatos molhados, sob uma temperatura pouco diferente da que faz lá fora. Quadros ordinários (mas os grãos-senhores do Renascimento prestigiavam os inovadores do seu tempo, não imitadores como estes) e ausência de livros, que não merecem a honra dos arreios, orgulhosamente exibidos (quando a Biblioteca Ambrosiana, em atividade há três séculos e meio, é fundada justamente por um Borromeu). O guia informa que a família só habita o palácio dois meses por ano. Roos, ante a janela, olha os gramados e as flores sob a chuva. Corre-me as veias, lento, um tropel de caititus: batem as mandíbulas. Fecho os olhos e escuto-os desfilar. Vão-se. Da varanda envidraçada que circula o edifício ocre e branco do hotel, formando uma espécie de jardim de inverno (Regina Palace, Orchestra, Spiaggia privata, Equitazione, Sci nautico), observo um veleiro em luta contra os ventos que descem das montanhas, encrespam o lago Maggiore. "Vi estes lagos, ontem, na Geografia de Lorenzo de Mediei. Foi aí que me ocorreu, caso você viesse, trazê-la aqui. Não estava chovendo. Não chove, nas Geografias." Seu rosto, contra a vidraça e a paisagem, lívido do trajeto entre o castelo e o barco, e da travessia sobre aquelas ondas inquietas, vai retomando a cor habitual, absorve a claridade incerta deste meio-dia: "Também tenho visto alguns mapas antigos. São tão estranhos. Dão a impressão desses desenhos da fauna asiática ou africana, feitos por europeus que não haviam saído da Europa e imaginavam um elefante de acordo com os animais que conhecemos: cães, cavalos, melros." Falta um vidro nos altos do salão de espera e alguns homens, com roupas pouco espessas, deixam-se ficar nos bancos ao pé das paredes, decerto para fugirem ao mau tempo. Roos consulta o relógio. "Digo, em geral, que sei bem o que faço. Mas a verdade é outra. Sei que amanhã devo estar em Paris. Sei por que vim a Milão? Por que estou aqui? Não. Também não sei porque vou embora quando podia ficar. Nada me impede." Vagas abatem-se contra os vidros da lancha. As franjas espumantes rebentam nos portais e molham os passageiros. Soltam-se as amarras, fecha-se a porta, vai a lancha conosco para Isola Bella. Três australianas, sua governanta, seis japoneses, oito ou nove matronas do Alabama, todas de chapéus floridos, um casal de alemães em viagem de núpcias e três religiosas de não sei que convento em Campobasso. Silva o vento, as ondas se sucedem, salta a embarcação, range o madeirame. Uma das freiras, ainda muito jovem, tosse sem parar. Não estaremos em nosso próprio velório? Trinta cadáveres vogando sob a chuva, entre destroços. A cerração, balsas de salvamento, refletores, sereias, Roos fragmentando-se, um cosmos, cidades vazias de seres humanos, vindas de inúmeros pontos da Terra e precipitando-se no lago, como os porcos possessos de Gerasa, porém em silêncio e não sem grandiosidade. Falham as manobras para atracar. A embarcação vibra de proa a popa, cheia de asas e de nadadeiras tortas e o casco de madeira bate no molhe, seguidamente, com um ruído cavo. Movimentos cautelosos e enérgicos ligam-na ao cais; as ondas continuam a lavar as janelas. Sob a chuva e o vento, agora mais intensos, vencemos a distância entre o ancoradouro e o Palácio Barromeu, rentes às paredes das pequenas casas de comércio. O vento gélido fere-nos os olhos. Picos nevados, de nítido desenho, à luz sem esplendor da tarde; casas de campo aglomeradas no sopé verdejante das elevações mais próximas, algumas subindo pelas encostas. Roas mantém a taça à altura do colo. Ouço claramente, enquanto falo, o bater do sangue no seu pulso! "Desenhar o elefante com base no que se sabe dos melros. .. Mas talvez alguém que só conhecesse o elefante através dessas estampas, encontrando um elefante verdadeiro, o identificasse. Daí voltamos à cartografia. Com aqueles mapas imperfeitos, os navegantes chegavam sempre aonde desejavam. E quando se perdiam, sabiam que estavam perdidos. Isto dá o que pensar. Na verdade, um mapa, para ser exato deveria ter as dimensões do país representado e então já não serviria para nada." As plantas colocadas no salão de chá, pouco a pouco, voltam-se na direção de Roas, como se ela fosse, no recinto, uma janela aberta. Ouve-se a voz frágil da religiosa: “Io non vorrei morire senza aver visto il Varese.” Percebeu o que ela disse, Roos? Que não queria morrer..." "Sim." A vista panorâmica do lago: verde, cinza, azul e violeta, com seus barquinhos que parecem besouros arranhando as margens. Esta visão perante, a jovem freira fechará os olhos. Ainda hoje, talvez; ou amanhã. Vê-se a morte no seu rosto. Mas o lago Varese, para ela, nunca, não foi sonhado e anônimo. Situava-o nos mapas. Escrevo no guardanapo, sobre o oval com uma coroa onde se lê HOTEL REGINA OLGA - CERNOBBIO - COMO: Je vous aime. Roos volta o rosto para fora, esquiva. Barcos de cores diversas presos à margem do lago, as proas um pouco empinadas, alguns protegidos com encerados. "Há inúmeras maneiras de amar e eu jamais conseguiria dar-lhe uma idéia do modo como a amo, um amor mesclado com o inalcançável e a geometria. (Move-se na minha boca o instrumento estranho?! Sim, léxico e sintaxe, dóceis, obedecem-me e tornam-se, associados, um mapa menos rasurado e mais preciso.) No entanto, Roos, quando eu escrevo que a amo, exprimo a substância e a natureza do que você deflagra em mim. Não se parece com os mapas? O que eu digo é algo incompleto e falho. Mas você chega ao porto. Com estas palavras, orienta-se e chega à compreensão do que eu quero dizer." "Pode-se mentir." "Neste caso, trata-se de um mapa enganoso. O mapa de um continente irreal, não um mapa imperfeito." As flores e as folhagens inclinaram-se mais em direção ao seu rosto de uma simetria rara. "Pouco depois que você seguir de volta a Paris, sai meu trem para Verona. Não há melhor cidade no mundo para que eu lhe diga com a carne o que disse com palavras. Tem alguns minutos para decidir. Por que não vai comigo? Talvez, lá, você saiba porque foi." Veio a Milão e está a meu lado, o calor da sua coxa direita atravessa as lãs e me aquece docemente o flanco. Nem assim estamos próximos. Sem essa chuva constante, sim, quem sabe, sem esse vento veloz e incansável! O silêncio retorna e eu fixo, vago, a moldura sem o vidro nos altos da parede. Outro barco, maior, aporta a isola Bella. Através da chuva, vamos distinguindo os ocupantes vestidos a rigor e as mesas postas, com flores. Protegemo-nos sob um toldo agitado pelo vento. No barco, irrompe uma música festiva - xilofone, flautas-doces, uma corneta, pandeiro, bandolins. Decerto um epitalâmio. Mulheres com chapéus e peliças desembarcam, os garções, enluvados, protegem-nas com guarda-chuvas de gomos brancos e verdes, os cavalheiros, aos saltos, correm com as mãos sobre a testa, um cão põe-se a latir. Tábuas são jogadas no caminho, e mesmo assim molham-se as meias das mulheres, os sapatos revestidos de cetim. Surge a noiva. Há um grito isolado, sem resposta: Viva la sposata! Ressoam palmas úmidas. Com a mão esquerda, estreita o buquê de camélias sobre o peito: com a outra, sustém a grinalda; o véu de gaze, pregueado e amplo, esvoaça. À sua aparição, o vento se levanta, sopra mais rápido, quebra as varetas do guarda-chuva azul com que tentam protegê-la, o véu, a ponto de rasgar-se, ondula, afia, estala à direita e à esquerda dos seus ombros, entra pela boca, emaranha-se nos restos do guarda-chuva, o casal de crianças ataviadas de veludo vermelho que sustenta a longa cauda do vestido esforça-se para mantê-la presa, mas tanto cabeceia o vento nessa vela de rendas enfunada que a moça vacila, a ponto de voar. Da capela para onde se dirige o cortejo vem um som de órgão. Volto-me, Roos está a dois passos de mim, o rosto salpicado da chuva, e nosso olhar se cruza com uma força estranha, tenho a impressão de que me vê pela primeira vez, sem espanto, sem paixão, apenas surpresa. Somos quase os únicos ainda sob o toldo, até as freiras se foram, ela sorri, um sorriso desolado, volta a olhar para as águas inquietas: "Quando eu casei, também estava chovendo". Que posso fazer, eu, contra essa recordação? Aperto-a contra mim. Abalam-na, secos, dois ou três soluços, como se alguém a houvesse esmurrado nas espáduas. O vento e as ondas rosnadoras do lago misturam o hino sacro com a música profana execu tada no barco.

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