UMA REDE NO AR - Os fios invisíveis da opressão em Avalovara, de Osman Lins

Leitura por Temas: O ROMANCE Avalovara é estruturado em oito temas, indicados pelas letras R, S, A, O, T, P, E, N, cuja origem é o palíndromo SATOR AREPO TENET OPERA ROTAS. Cada uma das letras é acompanhada de um título. A disposição dos oito títulos obedece à ordem da inscrição das letras no quadrado, conforme a incidência da espiral que lhe é superposta, gerando uma estrutura não seqüencial.

No agrupamento por temas, desconstruímos o entrelaçamento dos temas e os dispomos em ordem seqüencial, tema por tema, formando oito unidades, cada uma com seu desenvolvimento contínuo. Isso possibilita um tipo de leitura seletiva, já previsto pelo próprio autor.

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Você está em Leitura por temas » Tema A - Roos e as cidades [A11]

Quanto desejaria encontrar a Cidade cuja imagem aparece-me uma tarde, miniatural, vinda através de mares e estações, como o espectro de um pássaro ou de um antepassado! Será possível, entretanto, reconhecê-la? Não deve ter-me chegado completa. Torres e tetos, na sua migração, ruíram em parte e é possível que vegetações, muros e até pontes lhe tenham sido acrescidos, extraviados quem sabe de que outras cidades. Acredito, por exemplo, que as tríplices muralhas não existam: podem ter sido capturadas pela Cidade ao longo da viagem, cingindo-a, uma grinalda. Grinalda de pedra, com ameias e portões. Muitos exemplos existem de semelhantes acréscimos e perdas. Quantas vezes evoca o Tesoureiro o episódio - nunca decifrado - do seu parente que morre com os dois braços e ressurge mutilado anos depois? Na cabeça, apanhado em não se sabe que belchior do Tempo, um chapéu que nunca possuiu em vida, recoberto com penas de canário e posto um pouco de banda. Um chapéu a mais e um braço a menos. Também conservo o recorte de jornal com a história do gravador norueguês Helge Nielsen. Expõe Helge Nielsen em Londres várias águas-fortes do quadrúpede visto por ele uma tarde de agosto, junto ao muro da sua casa em Oslo, lambendo a pata esquerda. O naturalista Edvin C. Porter identifica o espécimen, desaparecido há um milhão de anos, adiantando que algo modificou sua conformação, faltando-lhe, na gravura de Nielsen, a cauda original, além de pequenos outros pormenores, sendo inteiramente fora de propósito a espécie de tromba que ostenta, por momentos, junto ao muro do artista. Desenhos encontrados nas escavações de Enússia comprovam a afirmação de Porter. Sim, a Cidade, certamente, não é igual à imagem que um dia me aparece e logo submerge. Acredito, porém, que a reconhecerei - e assim busco-a. Não que saiba com qual fim e por quê. Sim, sei. Vendo-a, encontrarei - e o verbo, neste caso, em si mesmo termina, é como se eu dissesse: cantarei. Canta-se uma ária, uma canção; disto não se pode fugir. Será preciso acrescer, para que se compreenda o sentido do ato de cantar, o que se canta? Contudo, é possível que eu venha a descobrir, na Cidade, alguma coisa - e a minha atração por Anneliese Roos, meu interesse por ela, a continuidade com que me ocupa, desde o domingo em Amboise, a mente e os sentidos, leva-me a perguntar, incerto, se acaso não me espera, na Cidade procurada, a claridade - ou então um objeto, um ser de que a claridade constitua a substância ou mesmo o avesso. Porque a claridade é a marca de Roos. Uma claridade que não ajuda a ver e que talvez ofusque. Ainda assim, Roos, essa cidades, impressiona-me por sua oposição às sombras. Imagino: ela atravessa o mundo com o encargo de não deixar que a noite prevaleça. Na luz com que Rembrandt assina os quadros ou no reflexo das chamas sobre uma peça de metal, sobre uma garrafa, sobre um rosto, inclino-me a ver, é irresistível, ressonâncias de Roos. Algo assim impulsiona o capitão de Melville. Entregar-se-ia ele a uma busca tão obstinada se a baleia que o faz revolver sem descanso o Oceano fosse de uma cor azulada como os demais cetáceos - e não branca? São suposições que parecem confirmar-se enquanto vago entre os canais, as ruas e os museus, cruzando o dia, este rio largo e ensolarado, onde na margem oposta, na margem da noite, talvez reencontre Roos. Disp(em mil impresões)erso-me. Misturo-me com apressados homens de negócio e despreocupados visitantes, ouvindo o marulhar das águas e o motor do barco vejo passarem ante mim edifícios cujos nomes (Rembrandt, Cornelis Ketel, Salomon Mesdach) vêm à deriva, Casa das Cabeças Esculpidas, dos Medidores de Cereais, Arsenal Velho, acompanho um grupo de escolares vestidos de vermelho, alguns soprando flautins, todos com flores amarelas no peito (Franz Hals, Pieter, Pietersz, W. van Valckert), contemplo os navios que atracam, lentos, com gaivotas em torno da mastreação, enquanto outros partem com um grito de sereias (há delicadas cortinas nas janelas das casas e dos barcos), estudo a evolução de Van Gogh, vagueio entre as mercadoras de flores (em muitos peitoris florescem gerânios), observo o vôo dos pombos, as resplendentes águias pousadas nos telhados (e as numerosas bandeiras hasteadas evocam sinos festivos). Como se estas impressões não fossem numerosas, em duas ou três se concentram, simplificando-se: pombos, gaivotas, flautas de metal, reflexos nos automóveis, nas bicicletas, nas águas; cortinas rendadas, sol nas vidraças, nuvens algodoadas, tudo forma uma só coisa, uma só palavra incompreensível e luminosa; a pintura de Vincent evolui das trevas, da fuligem, para ofuscantes trigais e girassóis; a luz perpassa como uma melodia através das mãos e das faces, nos quadros desses mestres holandeses, reinando com tamanha eloqüência sobre a escuridão dos trajes e dos interiores que se tem a impressão de ouvir, mesmo em artistas menores, a mesma frase: "Pouco a pouco avançamos para a vidência". Em Roos, essas vertentes parecem confundir-se. Ela abriga, dentre todas as cidades que em momentos propícios diviso no seu corpo (nas quais incursiono e me perco, sabendo que em breve daí serei arrancado e que logo haverei de voltar à cidade onde eu me espero, espero por mim, à sua frente), a que procuro e entre cujos muros, quando menos supuser, ver-me-ei, solitário; ao mesmo tempo, flui da sua pele, como se muitas velas a iluminassem de dentro, um esplendor - talvez a expressão visível do que sonho encontrar na Cidade, de maneira concreta, assim unindo a expressão e o seu objeto, tal como se durante anos eu houvesse lido, em palavras díspares - vida.. ave.. uva.. sonho.. hoje.. ver - as letras esparsas, ainda não unas, da palavra vinho, mais tarde a palavra vinho.. antes que existisse o vinho - e um dia, de súbito, encontrasse o vinho, e o bebesse, e me embriagasse, e soubesse que vinho era o seu nome, e que nele também estavam os sonhos, o hoje, a vida, as aves, as uvas, o ver.

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