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Você está em Leitura por temas » Tema A - Roos e as cidades [A8]
Como escapar a este resíduo irracional que me induz a ler nas coisas, onde tantas vezes penso decifrar (e já não leio em Roos?) representações da minha vida, textos, grafados numa escrita esquecida e nos quais, entretanto, identifico o meu nome?
Ocorre-me, ante Roos e o pássaro fascinado, que o meu destino ou uma parte dele - tão torto, apesar das ilusões da Gorda, quanto o de todos os meus irmãos e irmãs, com os seus inúteis instrumentos de música - pende da cena que atento observo: suba o pássaro à mão dessa estrangeira e estou para sempre enredado num baraço. Sem tentar dominar-me, bato palmas, o pássaro esvoaça, foge, desfaz-se a tensão no rosto mágico de Roos, ela se levanta e dá-me as costas.
Pouco retenho, ao longo da tarde, dos demais castelos visitados. Com o meu gesto, desapareci - como o pássaro - dos olhos de Roos.
Escreve Leonardo da Vinci que os testículos "aumentam a audácia e a ferocidade dos bichos" e espanta-se de que o homem cubra e esconda o pênis, "quando, na verdade, tal como se procede com um ajudante idôneo, deveria adorná-lo e solenemente mostrá-lo."
É isto o que praticam, todas as manhãs, com Gargântua, as alegres governantas, enfeitando seu "ramo de coral" com flores, fitas e outros arreios: Por que então não enfeito com folhagens meu ramo de coral?
Por que não exibo de uma vez a Roos e com solenidade este ajudante idôneo? Escondo-o em todas as paradas da excursão, sem que ela uma só vez me fale ou se volte para mim; o que faço é contemplá-la e inquirir, calado, os seus espaços, vespas cravando o ferrão nas minhas costas, de sorte que os salões, os pórticos, as escadarias, tudo percebo como que flutuando em sua imagem e de mistura com a dor, com as vespas raivosas. Cruzam-se pedaços de frases em várias línguas estranhas, cresce em mim uma espécie de pressão (introduzo num cilindro de lata o eixo do pião japonês acionado a corda, introduzo-o com mãos infantis e a mola escondida no cilindro, a mola, cuja ponta recurva sobressai, fisga uma ranhura oval do pião, eu giro o cilindro e sinto a mola enroscada, pronta a disparar, mas em vez de premir o eixo do pião e fazê-lo girar eu o aperto um pouco - só um pouco - para sentir a força contida da mola, e agora é como se surgissem em mim outros piões, trinta, sessenta, cem, presos em seus cilindros brilhantes, as cordas apertadas, prontas a desprenderem-se por si) até que noite fechada, novamente em Chambord, após esse dia febril e abundante em imagens, ouço aproximar-se um ronco, um estrondo e me vejo envolvido pelos faróis de dezenas de motocicletas, conduzem-nas rapazes com blusões de couro, moças nos porta-bagagens, enlaçando-os, cruzam-se as máquinas em ziguezague, os motoristas, todos de negro, gritam uns para os outros calcando os aceleradores, os faróis trespassam-se na noite, novos veículos chegam, ninguém desliga o motor, o trovão vindo do ar e da terra me rodeia, levanto os braços em meio ao turbilhão de pneus, luvas, rostos, canos de escape, guidões e jatos ofuscantes - e brado, mãos nos ouvidos, o nome de Roos, um grito longo, o mais longo que posso, no bojo do bramido provocado pelos setenta motores de explosão e com tal violência que enrouqueço. Como se estivessem à espera deste apelo, quase a um tempo só, os motores emudecem e os faróis começam a apagar-se, quase a um tempo, e eu me vejo livre das vespas, dos seus aguilhões, mas fendido, sem fôlego, só, rodeado de estranhos.
Sei que prosseguirá (ou prossegue?) o nosso encontro interrompido; apenas desconheço, da seqüência, o modo e o ritmo. Como um indivíduo jurado de morte e que espera a cada instante - de um penhasco, de uma esquina, de uma aroeira perdida na caatinga - as balas que, mesmo não disparadas, já zunem em direção a ele, aguardo para cada próximo minuto - nas curvas do já, do agora - o recomeço. Através da vidraça, fechada ao vento ainda cortante, filtram-se as vozes das moças que, de volta da Páscoa, expõem as coxas no pátio ao sol de abril. Procuro ler: o livro parece ter sido copiado por mim, tanta é a carência de surpresas e de prazer que encontro na leitura. Examino, com uma lente, os folhetos de turismo que se acumulam no anuário, separados por países e atados com barbante.
Vem-me, imperioso, o impulso de recomeçar a busca da Cidade.
Deito-me e fico olhando para o teto. Baratas negras surgem nos rodapés, sobem na cama, andam no meu rosto, no pescoço, nas mãos. As vozes decrescem. Vão-se as baratas, com suas asas riçadas.