UMA REDE NO AR - Os fios invisíveis da opressão em Avalovara, de Osman Lins
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Leitura por Temas: O ROMANCE Avalovara é estruturado em oito
temas, indicados pelas letras
R, S, A, O, T, P, E, N, cuja origem é o palíndromo SATOR AREPO TENET OPERA
ROTAS. Cada uma das letras é acompanhada de um título. A disposição dos oito
títulos obedece à ordem da inscrição das letras no quadrado, conforme a incidência
da espiral que lhe é superposta, gerando uma estrutura não seqüencial.
No agrupamento por temas, desconstruímos o entrelaçamento dos temas e os dispomos
em ordem seqüencial, tema por tema, formando oito unidades, cada uma com seu
desenvolvimento contínuo. Isso possibilita um tipo de leitura seletiva, já previsto
pelo próprio autor.
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Você está em Leitura por temas » Tema T - Cecília entre os Leões [T15]
No sossego da noite, aparecem-nos os dois. Eles. Cecília e Abel, cobertos de arranhões, pouco menos do que nus, vestidos só com os braços, com as mãos e com os panos rasgados. Trilam os pássaros, espantados com as vozes estranhas que invadem o silêncio onde moramos. Indagam: “Visitas? Visitas? Tiu? Pio?”. Edemas na cara e manchas secas de sangue no que lhes sobra das vestes. Parecem envenenar-se, os dois (dois?), sorvendo o ar corrompido pelo seu próprio amor fugaz e predador. Despeçam-se: salvem-se. Quebrados e moídos. Esplendem, mesmo assim, dentro dos corpos. Não. Outro corpo, um corpo de desejo, arde intacto dentro do corpo de carne e cheio de vergões. Abel me olha, olha-me através do corpo de cecília, olha-me com triunfo (ele, o batido) e nós o vemos atirando-se com asas no centro inviolado de cecília. Cecília me olha, de face. Seu olhar uma chapa — negra, larga e brilhante, folha de pedra, impessoal e densa. Rompe-me os barbantes da alma com esse olhar. Como quem diz: “danem-se. Ajudem-me e danem-se. Estas feridas são a véspera de abel.” Visível, tangível, o sinal de logo que os envolve e cerca-os. Cerca-os? Não é um arco. Quase. Arco rompido: as pontas quase invisíveis não se encontram e podem continuar. Continuam? Cecília, abel, cecília, nele inclusos e presos — o laço. Armadilha. A agulha, imantada, não aponta para qualquer lugar. Abel recusa a ajuda que lhe ofereço (“cuidem de cecília!”) E senta-se no banco, o álbum sobre os joelhos. Apagada a lâmpada do alpendre. Para que, então, o álbum?
Levamos, Hermenilda e Hermelinda, Cecília para o nosso quarto. Na pele, onde tocamos, ela estremece. Tão flagelada a sua pobre carne? De agressão ou de desejo? Trespassamo-nos solícitas. Suspicaz, Cecília nos espreita, as mãos cerradas. Vendo as duas velas acesas em frente ao oratório, pede a minha irmã: “Apague a lâmpada.” Obedeço. Procuro no guarda-roupa um vestido nosso, antigo, leve e limpo, que lhe sirva. Ouço o grito. Um soluço? Soluço ou grito: vejo sem querer, a luz discreta das velas, o sexo duplo e dúbio de Cecilia. Verso e reverso. Bainha e faca. Curvo-me aos pés da cama, a cabeceira da cama — e recebo na cara, coice, o olhar da minha irmã. Acaricio os pés feridos de Cecília, acaricio o rosto de Cecília, beijo os seus cabelos e faço por aquecer, com o calor quase extinto do meu corpo, seus pés alados e firmes.
Saio do quarto e Cecília me segue, mais velha em meu vestido malva, de seda, com rosas silvestres no peito. Por trás de Cecília, da porta do quarto, vejo Abel de pé na sala de jantar. Une-os o arco de chamas. Ele se volta para mim e para mim, o álbum ainda na mão. Acaso nos vê? O ar com que contempla Cecília por entre as pálpebras inchadas revela uma alegria estranha. Sua expressão é a do homem ao abrigo de escolhas. Ele abarca os contrários em uma das raras encarnações terrenas.
Com o seu hábito, vindo dos velhos tempos, de manter livre a entrada, deita-se a Gorda quando bem entende e deixa a casa entregue a quem vier. “É meu filho Abel? Estou aqui, deitada. Vem cá, homem." Orientado pela sua voz, abro a porta do quarto.
- E se não fosse eu?
- Perguntei por perguntar. Conheço as tuas passadas.
Parece ainda mais vasto, na obscuridade, o vulto negro sobre a cama de lona sem lençol. Ocupo uma cadeira de vime, deformada, com travesseiro no encosto.
- Não aparece mais! Abandonou a velha?
Ri. A alvura dos pés, intensificada pelo vestido preto, sobressai na penumbra. Cruza-os.
- Enfurnada aí por quê? Esse quarto doentio!
- Descansando a vista. Agora, então, que entrou dezembro! Dá até dor de cabeça, essa brancura no mundo. Entre meio-dia e duas horas, já sabe: meto-me aqui.
Lucíola veio visitá-la e pedir algum dinheiro. Contou ter visto Dagoberto caído bêbado na rua. O marido, sempre as voltas com negócios mal orientados, anda outra vez sem meio de vida. Resultado: Lucíola está grávida, quando o mais velho dos seis enteados já vai fazer 16 anos. Cesarino jura de pés juntos que o Tesoureiro se jogou na frente daquele caminhão. Terá sido mesmo, Abel? No ângulo de parede e a altura da cama, dois pequenos pontos fixos em mim: os olhos do gataco.
- Não sei. Talvez. Ninguérn pode saber.
O rumor das vagas chega amortecido ao quarto. O mar, ao sol das duas horas, continua moendo as paredes e pisos dos Milagres.
- E você e Cecília? Continuam?
- Continuamos.
Os encontros em lugares distantes e pouco iluminados. Estala a cama de lona sob o peso da Gorda.
- Sua mulher esteve aqui outra vez. Anda atormentada, Abel. Tome cuidado.
O gato com cabeça de macaco esgueira-se no seu ouvido esquerdo, desliza pela garganta, some e reaparece sob a saia, entre os joelhos. Enrosca-se junto aos pés muito claros. Com um movimento repentino, ela afugenta-o e senta-se na cama.
- Está cheirando a remédio. Por quê? Venha aqui perto de mim. (Minha cabeça entre as mãos, aspira forte.) De onde vem esse cheiro de farmácia?
Antes que eu responda, e com agilidade inconcebível em corpo tão pesado, salta do leito, abre a porta do quarto e segura meu rosto, volta-o para a claridade. “Que diabo é isso? Todo lanhado!” O gataco sobe pelas suas pernas e aninha-se, trêmulo, no ventre. “Fui agredido.” “Por quem? Por quê?” “Não sei. Eu e Cecilia.” “Tire a camisa.” “Não precisa.” Começa a desabotoar-me. O gataco salta do seu ventre e se esconde sob a cama. Estende vez por outra o pescoço curto, examina-me e volta ao seu esconderijo. “Foriam os tais irmãos?” "Sei lá!” “Como não sabe?” “Podem ter sido enviados. Lembra-se? Um deles é escrivão da polícia.” “Cachorros. E você, por que não larga de mão essa dona? Tanta fêmea no mundo! Isso não fica assirn. Estão pensando o quê?”
Sem calçar os chinelos, dirige-se ao seu quarto, sobe numa cadeira, tira de cima do armário uma caixa de sapatos, sopra a poeira da tampa e joga-a em minhas mãos. “Fica com você.” Na caixa há um revólver e um punhado de balas. Devolvo tudo a Gorda, sem explicações. “Como? Vai viver apanhando? Quer morrer feito Eurílio?” O gato vem correndo, salta para a mesa da sala de jantar e se engasta no seu ombro. “Talvez você tenha razão. Já é demais haver posto Janira neste mundo. Matar os próprios filhos!” Guarda o revólver na caixa e o gataco abre os braços no seu peito, de costas para mim. “Desde quando há aqui essa arma? Eu não sabia.” “Cinco ou seis meses.” “Quem trouxe? O Tesoureiro?” “Ele mesmo".
As palmeiras, além do alpendre, não se movem sob a claridade dura. Paradas as cortinas das janelas, com os pássaros e caçadores imóveis.
- Você está lambendo cu de cão por essa criatura, não? Vai continuar encontrando-se com ela. Então, acabou a sessão de andar sacaneando nos ermos. Vocês vêm para o chalé. Claro, não vou ficar aqui botando olho. Eu me raspo. Fico andando pela praia e vocês que se atem. Quero ver se esses cornos - irmãos ou paus mandados de irmãos - vão ter peito de invadir a minha casa. (Corre entre as cadeiras da sala o gato com cabeça de macaco, escala o piano e desliza, veloz, entre os jarros de cor viva. Volta para a Gorda.) Que putos! Fazer isso com você. Ainda está com o rosto meio inchado.
Encaminho-me para a cisterna. A coberta de zinco, mesmo protegida sob a copa de três ou quatro árvores, estala ao sol violento. A água e o chão cimentado, úmido, atenuam o calor. Neste mesmo lugar - onde a Cidade mais tarde surgiria incitando-me a procura - várias vezes se cumpre, em mim, um rito arcaico. Raspo as coxas (tenho doze ou treze anos?) e escondo entre elas o pênis ainda infantil. Claramente, delincia-se o Mapa. Imagino ser, ao mesmo tempo, macho e fêmea. O Recife, meu país, a Terra inteira, mapa deformado e arbitrário. Passo a mão esquerda, de menino, na pele raspada e no púbis castanho; com a direita, femimina, aperto o imaturo sexo invisível, dobrado para trás, oculto entre as coxas. Surge assim o mundo - no mundo, eu - e com isto retorna a velha ordem imponderável que, equivocando-me, creio aplacada: “Vai homem, busca a Cidade.” O corpo que então me exalta e que conhece o gozo (ainda ácido) da carne é meu e não. Buscar a Cidade? Onde e de que modo? Não terminou a caçada? Casal. Procura, Abel, a Cidade aqui surgida e dissolvida. A umidade do solo penetra-me no corpo e a coberta de zinco distende-se sob o calor. Cruza o silêncio um som de bandolim e de vozes juvenis.
Rumores sobem da copa o estanho da bacia sob o jato forte da torneira tilintar de talheres água louça deposta no granito tinir da pia e as vozes. O vento agita levemente a lâmpada. A sombra do anteparo de papel, movendo-se, desloca o nexo entre os poucos móveis e as paredes. Abro a gaveta (sem odor de pólvora) e examino o trabalho já extenso sobre as quatro velhas. No chalé, concisamente descrito, sondam-se e falam sempre. Cada uma quer incutir no espírito das outras setuagenárias a memória da sua própria vida; as demais deverão esquecer o que viveram e recordar apenas o que ouvem. Todas, porém, ouvem três narrativas, as narrativas das irmãs. Fossem narrativas diferentes e o caos talvez se instalasse, ao mesmo tempo, em todas. Não é isto o que sucede. Irmãs, sempre viveram juntas e as suas lembranças assemelham-se. Assim as narrativas, todas idênticas, finindo, cruzadas e monótonas, entre as quatro personagens. Uma e depois todas se apercebem disto. “Ouço a história da minha vida ou esqueci realmente tudo o que vivi e conto, julgando falar de mim, as crônicas gêmeas das minhas irmãs?" Não será mais seguro inventar uma biografia? Antes isto que se diluírem no mútuo relato de eventos dos quais duvidam, mesmo tendo-os vivido. Decisão geral e quase simultânea, com a qual tudo se desconjunta. A memória assimila a invenção e cada velha, que tanto desejava impor as irmãs o relato do que viverá, ja não fala de si: conta um ser inventado. Cruzam-se pelos numerosos quartos do chalé as quatro velhas e as suas narrativas. Quatro? Descobrem que são cinco. Os relatos, como num vaso alquímico, podem ter criado mais um ser. Qual, dentre as cinco velhas (e todas inventam e narram), será a clandestina? Ninguém sabe e um ódio impaciente apossa-se de todas. Todas desejam ver mortas as outras. Sobreviver será o atestado e a comprovação da própria identidade. Esta a razão dos desejos maus e da espreita - e que, ao iniciar o conto, não me parecia clara. As velhas passarão depois a confundir o número dos quartos, das portas, dos pratos. Haverão perdido a noção das quantidades? Ignoram e continuam a não saber se serão quatro ou cinco. O ódio e a necessidade de sobreviver as demais continua, exacerbado. A primeira velha morre. Morrem a seguncla e a terceira. O conto encerra-se com a imagem das duas últimas octogenárias, contemplando-se na sala, sentadas, os velhos punhos cerrados. Contemplam a própria imagem? Elas próprias não o sabem. Não sabem e tudo esqueceram, menos o ódio e a obstinação de perdurar.
Ando pelo chalé vazio. Atento ao desejado som dos sapatos de Cecília (cruze o portão e venha, atravesse o alpendre, venha!) não escuto os meus passos no mosaico. Cinco meses exatos que a conheço na casa de Hermenilda e Hermelinda. Minha mãe, sentada em algum ponto da praia sob o guarda-sol de gomos desbotados, o macaco vigilante no seu corpo, acompanha as manobras das jangadas. Passo ante o espelho da sala e vejo-me. Marcas apagadas da agressão no meu rosto sem cor, vagamente aterrado. Sento-me na cadeira de balanço. O forro azul de madeira, as jovens fiandeiras na parecle, o retrato do casal: o queixo agressivo do ‘Tesoureiro e o olhar mordaz - conquanto um pouco perplexo - da Gorda aos vinte anos.
Range o portão de ferro. Vejo, na minha cara, marcas da agressão, sento-me na cadeira de balanço, as passadas leves de Cecília fazem mais leve o alpendre e a tarde mais plácida, seu vulto surge na porta, risos seguem-na e outros vultos entram, gente da lavoura, as mulheres com panos na cabeça, os homens com chapéus de carnaúba, as caras ressecadas pelo sol (enrugadas ou riscadas de punhal?), mãos duras como paus e os pés descalços uns cascos, as roupas em pedaços. Cecília, rindo, a blusa amarela, a saia rodada, com desenhos de pássaros e flores, precipita-se em direção a mim, com tal ímpeto que as cortinas vibram. Cheiro dos lavradores - suor queimado e barro. As enxadas, as foices e os facões chocam-se contra as paredes. Arde a pele de Cecília como esta hora da tarde.
A cabeça em macios travesseiros de macela, na colcha branca de rendas posta pela Gorda - sobre a qual, de través, ela estendeu ainda uma toalha rubra, de linho, com que me cubro em parte —, vejo Cecília despir-se. Os múltiplos odores de que o quarto está impregnado, vindos desses vasos porejantes, cheios de refresco e água de coco, das bandejas com talhadas de abacaxi, mesclados ao cheiro seco das folhas de canela semeadas pelo chão envolvem-na: frutal e umbroso parece-me seu corpo. Os sapatos claros, novos, jazem virados sobre a esteira que serve de tapete. Guarda-nos um pouco de sermos vistos de fora a cortina de filé, numa só peça, com o leão rampante mordendo a Lua. Difícil, mesmo sem cortina, sermos vistos por quem passe no oitão. O quarto, escolhido e aprestado com zelo, situa-se na ala oposta ao alpendre, sobre a parte mais baixa do terreno. Estamos, com isto, expostos a afuscante luz do dia e ocultos: a altura da janela nos esconde. Escutamos as folhas de um flamboyant arranhando as esquadrias (abram-se, em janeiro, suas flores sangüíneas), vemos o ramo que atinge a cortina e invade o aposento, vemos o céu de índigo, imensas nuvens brancas - e não somos vistos. Os rugidos do mar, não muito violentos, morrem aos pés de Cecília.
Este amor, embebido da ânsia, nunca vencida, de resgatar meus atos e escolhas infelizes, é magnificado com a circunstância de que no corpo de Cecília (Cecília: corpo e corpos, homens e mulheres, suas fábulas), eu ame de modo uno, não perturbado pela interferência purificadora - distanciadora, portanto, do espírito, seres numerosos e concretos. Fora do seu corpo, um amor como este é inviável ou realizável apenas como operação mental. Então, será amor? Sua androginia acrescenta ainda, as nossas relações, novos e provocadores significados. Não os vejo claramente e devo guardar-me de decifrações, o que significaria decifrar Cecília. Contemplo-os, atônito, como se contemplasse pela primeira vez uma figura geométrica, um signo, ecoante de lembranças ocultas, de sugestões simbólicas e de nexos ainda não discerníveis.
Nem tudo, aqui, é segredo ou verdade apenas intuída. Conciliam-se, bem vejo, contrários em Cecília; e não posso isolar, na sua carne, a Mulher e o Homem. Macho e fêmea, ela não distingue os inconciliáveis fundidos no seu corpo. Ama-me, então, duplamente - mulher, homem - ou o macho difuso nela incrustado avalia-me com hostilidade? Há, neste caso, um teor de repulsa na sua entrega? Pode suceder que o macho e a fêmea cruzados em Cecília (contempla-me talvez com quatro olhos, dois de mulher e dois de homem) amem-se de um modo absoluto, conquanto incestuoso, amor impossível aos seres comuns. Todos os meus gestos, palavras, atos - segregado e só que sou — seriam um simulacro desse amor, trespassado de ilações misteriosas. Nos códigos alquímicos, um hermafrodita, imagem das núpcias entre o Sol e a Lua, morre e apodrece para renascer: dele se obtém a Pedra Branca, fermento para o Reinício. Um símile impõe-se, por tudo isto, entre o andrógino e Jano, deus bifronte. Encontrando-o, adquirem as minhas relações com Cecília, assim o julgo, uma expressão insólita e mesmo assustadora. Indispensável, por enquanto, ao meu comércio com o mundo, chegar à compreensão, ainda que imperfeita, da função do caos e da sua natureza. Os dois rostos de Jano, gravados em tantas efígies monetárias, representam, leio talvez em Ovídio, um vestígio do seu estado primitivo: nas trevas onde o mundo ainda não existe, quando tudo é pesado e leve ao mesmo tempo, Jano, deus dos limiares - e portanto das partidas e das voltas chama-se Caos. Liga-se, simultaneamente, à ordenação e a desordem. Minhas indagações, neste caso, estão escritas em Cecília?
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