UMA REDE NO AR - Os fios invisíveis da opressão em Avalovara, de Osman Lins

Leitura por Temas: O ROMANCE Avalovara é estruturado em oito temas, indicados pelas letras R, S, A, O, T, P, E, N, cuja origem é o palíndromo SATOR AREPO TENET OPERA ROTAS. Cada uma das letras é acompanhada de um título. A disposição dos oito títulos obedece à ordem da inscrição das letras no quadrado, conforme a incidência da espiral que lhe é superposta, gerando uma estrutura não seqüencial.

No agrupamento por temas, desconstruímos o entrelaçamento dos temas e os dispomos em ordem seqüencial, tema por tema, formando oito unidades, cada uma com seu desenvolvimento contínuo. Isso possibilita um tipo de leitura seletiva, já previsto pelo próprio autor.

Imprimir tudo    Voltar

Você está em Leitura por temas » Tema T - Cecília entre os Leões [T10]

Encerrado o expediente, vão-se os funcionários. Não chegaram ainda os encarregados da limpeza, com seus baldes, vassouras, escovões e vozes. Tiro da máquina o papel onde procuro ordenar idéias vagas sobre o caos, jogo-o à cesta, abro distraído um jornal. Notícias alarmantes sobre as Ligas Camponesas e nas quais a voz do Tesoureiro parece ecoar, assustada e vingativa. Devo talvez invejar suas opiniões aladas, eu que insisto no hábito ou na deformação de pesar, sempre, todos os lados das questões, achando que só assim posso chegar a uma conclusão não muito distorcida. As condições de vida dos cassacos nos canaviais são desumanas? Logo me vem que os senhores de terra do Nordeste nunca poderiam pensar e atuar de maneira diferente. Começo a duvidar, porém, que estes meus cuidados tenham alguma coisa a ver com eqüidade ou que tal gênero de eqüidade, hoje, seja o mais leal e o mais útil à justiça. Soa o telefone, na mesa do Chefe. O som da campainha, estridente, agita os dois andares em silêncio: foge pelas janelas altas, reforçadas por grades cobertas de fuligem. Abandono o jornal, levanto-me, debruço-me no balaústre e fico olhando os montes de papéis inúteis jogados junto às cestas, embaixo, sob os globos acesos para nada. Hesitante e as idéias desfiadas. Será mesmo este mundo um tapete inteiriço? Cruza o salão Cara de Calo, gesticulando, entre as carteiras vazias, colocadas sem o menor sentido de ordem e protegidas por grandes folhas verdes de mataborrão. Pode ser, o mundo, um tapete despedaçado e também um tapete que nunca realmente foi tecido: só na idéia o seu desenho seria coerente e completo. Sim, pode ser. O caos é insalubre e mesmo repugnante. Não? Volta a chamar o telefone. Atendo e vários maxilares invisíveis, em redor de mim, começam a triturar, lentos, vidro ou areia grossa. "Sei que é você, Abel. Precisa voltar. O passado... Tenha compaixão de mim... Os laços entre nós... Não pode arruinar a minha vida... Não suporto mais. Vai arrepender-se, juro! Hoje, lembra-se?, seriam quatro anos. Abel!" Olho o número 6 no calendário e desfaço a ligação sem dizer sim ou não. Outra vez na balaustrada. Por uma espécie de instinto, ela conhece todos os meus pontos vulneráveis e são muitos. Quando se atira no corredor, de joelhos, barrando-me a passagem e rogando que eu não a abandone, sabe o que visa. Sabe que o seu gesto, para alguns indivíduos, não tem qualquer importância, podendo até comover. No meu caso, está certa de que não vai alterar ou sequer adiar a decisão tomada. Sobre isto não tenho a menor dúvida (sei quanto ela me conhece) e ainda assim cedo à trapaça. Qual a espécie de vespas que aferroam os grilos exatamente nos três centros motores - centros, decerto, afastados entre si - e os imobilizam? Alimentam as suas larvas com grilos imóveis e vivos. Cedo à trapaça e dou o lance que no fundo ela provoca, deseja, aguarda: esmurro-a na cara, eu a quem repugnam gestos dessa espécie e nunca, antes ou depois, bato em alguém. Mais uma vez retine o telefone. As noções de simetria, de equilíbrio, de nexo, tudo isto favorece-nos. Resta saber, resta saber se, ao olharmos de perto as manifestações, artificiais ou não, onde prevaleçam os ameaçadores contrários daquelas mesmas noções, não estamos devassando a real natureza do universo, expressa justamente no desordenado, no ilegível. Cerro os ouvidos ao telefone que insiste e oponho ao nome que me vem à boca o de Cecília. Várias vezes pronuncio-o, de bruços no parapeito, voltado para baixo, como se jogasse pequenas pedras brilhantes num poço, até que o telefone emudece. Percebo, deste modo, com o peso de uma solenidade jubilosa, que Cecília e eu, não sei em que noite obscura - ou claro dia -, não sei, viaje ou não, já estamos face a face. Cara de Calo reaparece. Olha para cima, sorrindo, enrugado o rosto de menino e dois dentes de menos nas gengivas senis. Foge aos saltos entre os móveis. Minha mãe, sentada na cadeira de balanço, come um cacho de jambos e vai pondo os restos num prato sobre a mesa, rindo. Por vezes, ri em sonhos: não dorme no seu corpo o gato com cabeça de macaco. Ri dos filhos que se vão ou dão com os burros nágua, da incapacidade que na maioria revelamos para qualquer esforço permanente ou obrigação continuada, de Eurílio baleado e morto aos dezenove anos num bordel ("Agora, sim, estou realizada: pari um mártir da libertinagem!"), de Estêvão, mais jovem que Eurílio, rendendo a alma antes do tempo depois de horas e horas dançando sem parar, desesperado, na Academia da Praça Maciel Pinheiro, por causa do noivado desfeito (a noiva, sem bens, viúva e mãe de três filhos, tem mais de duas vezes a idade dele), de Dagoberto desperdiçando a voz no Bar Gambrinus ou nos puteiros da Marquês de Olinda. "Tenho de rir. Semear tanta semente e não apanhar nada? Quis dormir ao luar e me deitei nas urtigas!" Através da porta que se abre para o alpendre e para a tarde clara, algum verde das árvores repercute nos seus olhos: parecem cheios de espanto sob os traços alteados das sobrancelhas. Os de Cecília (quando a reverei?), vivazes e mordentes, dançam sobre as coisas. - Pensando bem, meus irmãos talvez não sejam mais desnorteados do que todos esses que andam por aí como se tivessem as chaves do mundo. Mas ninguém que eu conheça tem a chave de nada - ninguém - ou sabe para onde vai: que rumo tomar e o que fazer de si. Um sistema de vida desgastado e que não serve mais? Talvez. Eu, pelo menos, olho em redor e não descubro uma corrente forte, viva, onde me atirar com alma e tudo, de uma vez e sem hesitação. Na zona canavieira há qualquer coisa de novo e que de certo modo me interessa: essas ocupações de terra e até esses incêndios. O objetivo é abalar e, quem sabe, eliminar de uma vez certos esquemas que já duraram muito. Mas será isto uma corrente ou um açude arrombado? Ouve-me atenta, agora, comendo os seus jambos. Não alcança, decerto, o que exponho - e concede outro sentido a esta espécie de monólogo que a nada conduz. Capta o meu pensamento? Não, bem sei. Apreende, em compensação, a perplexidade e a passiva insubmissão que a ele me levam. Isto já é tanto! E Cecília? Acha um sentido no que faz? As pernas delgadas são ágeis e vê-se claramente, sob a pele, os ossos dos joelhos. Sua presença semeia leões. - Uma maneira doméstica de ver as coisas pode supor que um homem está seguro de si porque assina o ponto no emprego e até porque faz greve quando todos fazem. Não está. O gato com cabeça de macaco, sentado no chão, olha amorosamente para os jambos. Salta para os joelhos da Gorda, daí para a mesa e toca de leve no prato, com as patas dianteiras, como se tocasse em brasas. - A ausência de sentido que marca de um extremo a outro o Brasil pode ser observada nas iniciativas do governo. Quando menos se espera, o homem que por obra do acaso está na Presidência da República, tira um programa da cartola: marcha para o Oeste, acabar com as formigas, extrair petróleo, construir Brasília. Essas coisas, claro, têm a sua importância, não sou eu que vou negar. Mas não constituem - como posso dizer? - um fim significativo. Sobretudo, não se coordenam com nada. Não são conseqüência de nada e não conduzem a nada. O país, de Norte a Sul, vive à deriva. Nesse quadro, como poderiam os indivíduos ser diferentes do que são? Aqui ninguém sabe de que lado o Sol nasce. Algumas pessoas (eu não quero dizer todas as pessoas, pois a grande maioria não chega nem a isso) inventam um projeto qualquer de emergência: Vou ser Governador. Vou ser chefe de seção. Ideais desconexos e artificiais. Calo-me e atento para o silêncio do chalé, cheio, em outros tempos, de moças e rapazes, vozes, canções e risos ressoando até na Sexta-Feira Santa. Fogos de artifício, música, bailes improvisados, o alpendre enfeitado com bandeiras e lanternas japonesas - um disfarce, uma prorrogação. A Gorda nessa cadeira, o gato-macaco no corpo. - Não sou uma exceção e tenho o meu projeto falso: vou escrevendo. Não estou - e acho que nunca estarei satisfeito com isto ou seguro da opção. Uma opção nada tranqüila ou alegre, é bom lembrar. Apesar de tudo, não tenciono assinar nenhum tratado de paz com o mundo em que vivo. Os meus irmãos não sabem - ou não querem - inventar um simulacro aceitável. Esta a diferença. Entre o desastre declarado e a aparência de finalidade, preferem mesmo o desastre. O animal, afastando-se do prato, recua e fita-me, movendo a cauda, as orelhas em pé. - A revolta nos engenhos talvez seja hoje, no Brasil, o único movimento que não constitui diversão e improvisação. Mas, por certas razões íntimas de que, para ser franco, desconfio, nem sequer em espírito eu participo dessa luta. Além disto, não sou homem de agir, no sentido comum da palavra. - Era só o que faltava, Abel, você metido a incendiar plantações de cana. As sobrancelhas em arco, finas e altas, dão-lhe um ar de susto e ela se balança na cadeira. Os cabelos pretos, meio descorados na raiz, refletem os vidros coloridos das janelas. No meu conto, esses vidros são brancos. As quatro velhas espreitam-se com ódio. Cada uma, sempre, conta sua história às outras velhas e todas as histórias se parecem. Equilibra-se o gato ou macaco noturno, desconfiado, no espaldar oscilante: num pulo silencioso, regressa ao corpo de mamãe. Move-se com agilidade e violência, como numa jaula. - Sua mulher me fez uma visita. Pede que você considere a possibilidade de voltar. Você sabe que eu nunca fui com ela. Mas podem recomeçar a vida aqui, se quiserem. Não faltam quartos e salas. Sim, não faltam: quase todos vazios. Mauro, Leonor e eu, filhos quem sabe de que pais, tropeçamos nos irmãos mais novos - Dagoberto, Janira, Lucíola. Move-se ainda Isabel no ventre fértil da Gorda, quando o Tesoureiro emprenha uma enfermeira e desta aventura nasce Damião. "Pois traga o diabo desse inocente, que eu crio. Mas agora, bode velho, vai ver quem é que tira as suas forças. Prepare-se!" Os leitos multiplicam-se. - Isto é um assunto encerrado. Além do mais...de certo modo...existe alguém. - Quem? Casada? Solteira? Livre? - Que interessa? (Haverá o Tesoureiro falado da viagem?) Existe. Solteira, acho eu. - Que desgraça! Um sujeito que nada tem a oferecer, comprometer uma moça de família. Que pode sair disto? - Sair, como? Talvez dê em nada e pode ser que eu...Nós nos vimos duas ou três vezes. Só. Levanto-me e estalo os dedos para o gataco. Ele dá-me as costas e arranha o sovaco da minha mãe, sonso.

© Copyright 2012 - UMA REDE NO AR :: Os Fios Invisíveis da Opressão em Avalovara, de Osman Lins. All rights reserved.

Centro Universitário Ritter dos Reis - Rua Orfanatrófio, 555 - Cep: 90840-440 - Porto Alegre/RS - Brasil | Telefone: +55 (51) 3230.3333