UMA REDE NO AR - Os fios invisíveis da opressão em Avalovara, de Osman Lins

Leitura por Temas: O ROMANCE Avalovara é estruturado em oito temas, indicados pelas letras R, S, A, O, T, P, E, N, cuja origem é o palíndromo SATOR AREPO TENET OPERA ROTAS. Cada uma das letras é acompanhada de um título. A disposição dos oito títulos obedece à ordem da inscrição das letras no quadrado, conforme a incidência da espiral que lhe é superposta, gerando uma estrutura não seqüencial.

No agrupamento por temas, desconstruímos o entrelaçamento dos temas e os dispomos em ordem seqüencial, tema por tema, formando oito unidades, cada uma com seu desenvolvimento contínuo. Isso possibilita um tipo de leitura seletiva, já previsto pelo próprio autor.

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Você está em Leitura por temas » Tema T - Cecília entre os Leões [T13]

Praça do Entroncamento: bancos de pedra sob as mangueiras e através da folhagem o luar no rosto de Cecília. Tudo altera esse rosto, sensível como água dormente e onde a cada instante descubro aspectos novos. Engano-me se creio que todas as coisas móveis e imóveis nele se refletem, transtornadas? Narro o incidente da véspera, de que ela participa sem saber. Atravesso a Ponte da Boa Vista. À minha frente, entre os passantes, segue uma mulher. Tem o seu mesmo porte, a mesma altura, cabelos curtos como os seus e o mesmo andar de lavandeira. Logo, um indício qualquer que não chego a definir — os pés talvez pousem no chão com um pouco mais de peso — me convence do contrário. Isto não impede que a sua imagem envolva o corpo da desconhecida visto apenas de costas e dele tome posse, substituindo-o. — Sei que não é você. Esta certeza serve-me entretanto para conjurar apenas uma parte da visão imposta aos meus sentidos: a outra, a anterior (a face e o peito que não vejo), continua a existir como se pertencesse a você. Enquanto a mulher não se volta para o rio, quebrando o rosto presente em meu espírito com a realidade e a violência do seu próprio rosto, sigo a distância um ser híbrido: — Metade você e metade uma estranha. O duplo e ainda não decifrado ser de Cecília estremece em meus braços como se percutido nas profundezas da sua substância. A impressão é tão nítida que eu a estreito com mais força, buscando evitar que se desgarre de si mesma. — Seria isto, Cecília o que me faltava? Um amor amplo como o que eu tenho por você e que em tudo imprime a sua marca? Seus olhos ficam um pouco mais oblíquos, mais baços — como se não me vissem — e ao mesrno tempo cintilam com maior intensidade. Creio ver, dentro dos olhos de fêmea, outros dois olhos. Viris? O que eu procuro não é ela e nela não está. (A voz rouca e o travo de melancolia). Ela, Cecília, pode quando muito ser uma parte do percurso que me conduzirá ao termo da procura. Do mesmo modo que, tendo-se vinte anos, precisa-se viver ainda alguns para chegar afinal aos vinte e cinco. Também pode ser que o termo da minha busca seja tão-só o início de uma busca mais precisa e ampla. Um véu brilhante, de trevas, perpassa novamente nos seus olhos. Há, neles, qualquer coisa, sim. Não de viril, talvez. Ela me fixa como o domador o cerne dos leões, antes de abrir a porta de grades. A Gorda e eu, ante a mesa cheia de papéis deixados pelo morto. Apólices, anotações sobre a sua existência de empregado, registros históricos, recibos, certidões de nascimento, bilhetes de loteria, exemplares de papel-moeda fora de circulação, pedaços de jornal com notícias da II Guerra Mundial, recortes do Diário Oficial. Separo e classifico esses resíduos. Ela põe a meu lado uma gaveta: - Vá jogando aí o que não serve. Fica bem nesse vestido negro, de setim. O gataco, sentado sobre a mesa, observa impassível a seleção dos papéis. - Eu me desfaço do chalé, Abel? Gosto dele. Mas para que ficar, sozinha, neste casarão? Tantos quartos! - O Tesoureiro deixou um seguro razoável. Com isto e a pensão, a senhora não vai passar necessidades. Enfim, pode aposentar-se. - Respeite sua mãe. (Passa a mão, roliça, nos cabelos tingidos e frisados). Que homem, agora, havia de me dar bola? Sou jornal de ontem. Um traste. Parado, o vento. Desabotôo o colarinho e abro mais o laço da gravata. - Acho que vou tomar urn banho de mar. - Sair da Missa de 7.° Dia para divertir-me na praia! (O gataco lambe a mão. Alternadamente, olha para mim e para a Gorda). Não vai pôr luto, Abel? Uma gravata preta, ao menos. Um fumo. - Ando muito alegre para ostentações fúnebres. - Eu sei, eu sei. Você não tem conserto. Foi visto de mãos dadas com uma dona, esperando o ônibus. Não quer saber quem me contou? Sua mulher. Ela estava na Missa. - Deu-me os pêsames. Eu pensava que eram pelo Tesoureiro. - Abel, Abel! (Salta o gataco para o seu regaço e ela começa a rir). Quem é a vítima? A que veio com as velhas, aposto o rabo. - Por que a senhora disse vítima? - Pôs as cartas na mesa? Seu casamento e tudo? - Ela sabe. Diz que isso conta, mas não muito. Primeiro, claro, sugeriu que fôssemos amigos. Respondi que amor espiritual é depravação. Não é mesmo? - Trabalho de sapa, hein? Ora, veja. Quero ver é você entoar essa cantiga para a familia dela. Já souberarn? - Um dos irmãos já me telefonou. - Irmãos? Não tem pais? - Não. Mora com uns parentes, na Rosa e Silva. Um dos irmãos trabalha na Polícia e o outro é escrevente num cartório. Se quer saber: não são ricos. Por que a senhora usou o termo “vítima”? Uma semana e ainda parece haver na casa um cheiro enjoativo de flores murchas e de velas acesas. - Quando ela entrou, só via mesmo você. Comia sua cara com os olhos. Nem parecia haver na sala um morto e outras pessoas. Olhos de fêmea e bonitos. Depois notou que eu era sua mãe e cravou a vista em mim por dentro das pestanas. Tenho experiência de umas tantas coisas. Sendo você, não me enredava muito com essa criatura. Senti na carne, quando ela se voltou para mim: o olhar soava grosso, com energia. Feito uma voz. Olhar de macho, Abel. O gato, cauda levantada, o dorso arrepiado e em arco, espreita-me, as íris roxas em brasa. Um animal com medo. - A senhora viu claro: tem bom olho. Mas podia ver tudo? Eu vejo mais. Em Cecília, conciliam-se contrários. Solidão e multidão. Delicadeza e força. Doar e receber. Direito e avesso. Enfim: íntegra. Considero-me, ante ela, um ser desfalcado. (O gato, menos tenso, continua a observar-me, vagamente ofuscado, com os seus olhos de macaco noturno). Não acha os híbridos atraentes? Examino, no ônibus, a reprodução de um baixo-relevo existente no Museu do Louvre, representando o homem como um frágil barco que voga sobre o mar do mundo. O esqueleto alado, na popa, simboliza a matéria; o velho no centro, o espírito imortal; a mulher à proa, sustendo nos braços erguidos uma vela enfunada, é a força vital; guardia das paixões cegas e dos impulsos irrefletidos, faz avançar o barco e os demais ocupantes. Presentes, em mim, a imagem e o encanto de Cecília. Assim: texto que se sabe de cor, que se é capaz de abranger com a mente — um todo — e de repetir, palavra por palavra. Enquanto, porém, olho as figuras (a janela do ônibus aberta e o vento seco do meio-dia batendo no meu rosto), Cecília, texto familiar, é uma aquisição adormecida — presente e discreta, calada. O ônibus, na Avenida Norte, ganha velocidade. Alterado o acordo existente entre mim e tudo que forma este momento (o ritmo da viagem, a constância do vento e da rotação do motor), levanto a cabeça. O vento, com força crescente, sopra sobre mim vindo dos manguezais e infla-me, infla-me, eu cresço. Não só o vento: sou invadido pelo vento e pela rapidez. Infla-se o meu peito contra o vento como a vela do relevo, enfuna-o a rapidez — e de repente, colhida no ar, na velocidade, ocupa-o sem nele caber, feita de vento e de aceleração, a imagem de Cecília. Esta presença e o nome, o seu, que se forma na garganta, um laço, coincidem. Não o pronuncio e o laço me sufoca. Súbito, desata-se, desata-se o nome, um corte na garganta, o nome se pronuncia, banha-me o peito, rubro, um leque. Brilhante e rubro. Uma pulsação — e apaga-se, o leque. O ônibus retorna a marcha anterior. A presença de Cecília, egressa do fundo onde as coisas dormem, não é mais um texto sabido e não lembrado: acompanha-me, nítida. Derby-Tacaruna, o canal, lentamente escavado, restitui uma parte do Recife a situação de ilha. As línguas de terra aos lados do canal, baldias, onde não transitam veículos e que se alargam por dezenas de metros, dá-se a arbitrária designação de Avenida. Mas as residências acaso levantadas nas proximidades recusam esta presença incômoda e as janelas das fachadas evitam-na. Entre as casas e os muros do canal, baixos e largos, que as pessoas cruzam (mas quase sempre em grupos, receosas desse ermo pouco iluminado), cresce uma vegetação sem brilho, de pouca altura e áspera. Algumas árvores bravas. As águas do canal variam apenas de volume, à mercê das marés: altas ou não, são sempre lodosas, escuras, tresandam a ossadas podres e dormem sobre uma camada de lama que a vazante revela. Nessas horas, o odor de podridão recresce; tocado pelo vento, alcança as moradias, longe. Aguardo a vinda de Cecília. Os irmãos ameaçam agredir-me e ela sugere encontrá-la neste lugar deserto. As águas cheiram mal? São, mesmo assim, outras águas. Refletindo a Lua, embaçam-na — e da Lua, nelas refletida, recebem um sinete. A vegetação, sob o luar, agride menos. As vozes dos batráquios e dos tantos insetos, invisíveis, tecem na sombra, entecem, fios de voz enlaçam fios de voz. Um cavalo ruço, sem arreios, as clinas caídas e puxando uma corda, procura descobrir o que comer entre os arbustos de folha acre. Sopra a intervalos entre os beiços. As batidas dos cascos no chão mole soam como breves fórmulas enigmáticas trocadas entre a Terra quieta e o seu sentimento de estar vivo, ele, um animal de carga, velho e de juntas emperradas, agora em repouso, vasculhando ocultos verdes. Deslizam para longe as cobras, escondem-se, enrolam-se nas plantas mais distantes, cúmplices. Cecília, eu e Cecília, sentados no chão, não longe do cavalo, entre os arbustos retorcidos e de caule espinhento, a cabeça de um recostada no joelho soerguido do outro. Vemos, mas elas não nos vêem, as pessoas que perlongam o canal utilizando a muralha de cimento. Ela contesta a razão de ser de expressões minhas e faz-me ver quanta coragem há em atingir-se certa espécie de resignação. Devo aceitar o meu estado de banido do Éden. Não inauguramos, eu e ela, um mundo. Mundo algum. Nenhum. Não estamos separados ou isentos do mal. O mal, quinhão e herança, faz parte de nós. Ao contrário, porém, dos afortunados solitários do Éden, estamos longe de ser protagonistas de alguma fábula de queda e expulsão: nascemos expulsos e caídos. Temos, com isto, a alternativa de aceitar a condição de degradados e realizar, em ações densas de generosidade e de cólera, a nostalgia do Jardim. Por outro lado, as onças hoje só lambem a própria pele. Mas o turbulento globo que habitamos é povoado de homens. Deitados sobre as folhas, lado a lado, somos conduzidos através das estrelas pela Terra. Estamos de mãos dadas, em silêncio e a presença de Cecília amplia-se, levanta-se, vem sobre mim, uma vaga, envolvendo-me, vaga vagarosa, como se contemplada de uma elevação. O cavalo, mais perto, agita a cauda e as clinas desbotadas. Seus cascos entre as plantas, cautos. Cecília volta-se e descansa a cabeça no meu ombro. O hálito aquecendo a minha pele, diz que me ama, dez, doze vezes, em voz baixa, como se as pessoas ao longe pudessem ouvi-la ou como se as palavras que repete, enunciadas com força, perdessem o seu caráter íntimo e secreto. Habitantes de Cecília, liberados, passam a distância ou atravessam-me. Um, dentre ele, vem e vem, desquieto, em alpercatas, a aba do panamá caída sobre a testa, escondendo o fulgor ardente e vítreo dos olhos. Sua passagem é igual a um vento forte: todos se curvam um pouco e inclinam a cabeça. As cobras se aproximam. O cavalo parece feito de luar. Quente e abafado o ar, apesar do aguaceiro repentino. Abro uma das janelas. As águas já devem estar levando mocambos, nos alagados de Campo Grande, no aterro de lixo do Coque. Desperto quando a chuva recrudesce – e então rompem os limites do sono, flutuando no quarto, números flâmulas mesas cadeiras pranchas, tudo carregado de um sentido arbitrário. Exprimem prioridade e envolvem-me, a mim, um nadador meio acordado. Virá essa idéia de prioridade da presença de Cecília? Ela embebe tudo, mesmo a destruição? Vibra o claustro de Santo Antônio sob as explosões vindas de fora, da rua do Imperador. Manhã de Todos os Santos. Estou no centro do pátio, sobre as lajes roídas pelas alpercatas dos franciscanos e os sapatos dos visitantes. Observo, pela décima vez, os azulejos da Holanda que revestem, ao ar livre, o guarda-corpo da galeria alta do claustro. Mil? A cinta, caprichosamente estendida acima das arcadas e colunas, forra os espelhos dos quatro parapeitos que demarcam o pátio. Homens trabalhando, azuis, crianças entretidas nos seus jogos, nadam monstros marinhos, navios, o galope azul dos cavaleiros e em vasos azuis descerram-se flores de anil. Um pássaro, dando a impressão de extraviado, pousa junto a mim. Terá fugido da Arca do Dilúvio, representada no painel de azulejos portugueses que ornamenta a parede do térreo, à direita da entrada? Desorientado, manchas de ferrugem e duas listas brancas nas coberteiras das asas, anelante. Que pássaro é? Quando me surge íntegra a imagem de Cecília, coisa rara, permaneço imóvel, mesmo sabendo ser impossível reter, sem que logo se deforme, tal visão. Ajo assim ante este pássaro não familiar. Que a visita seja longa! Sem me mover. Mas o pássaro, como um cão que mostra a caça, o pássaro, fugitivo da Arca e do Dilúvio, parecendo voltar a parede de onde vem, desvia-se, voa em direção aos painéis que mostram a Criação do Mundo e a Morte de Adão, gira ante ele, atravessa em diagonal o pátio ensolarado e roça, na parede oposta, os azulejos da Torre de Babel. Sua vinda e vôos dão-me a impressão de uma frase escrita que eu contemporâneo da Torre e da Confusão das Línguas — sou incapaz de entender. Ele parte, veloz, para a grande manhã cheia de explosões. Onde terei visto um pássaro igual?

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