UMA REDE NO AR - Os fios invisíveis da opressão em Avalovara, de Osman Lins
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Leitura por Temas: O ROMANCE Avalovara é estruturado em oito
temas, indicados pelas letras
R, S, A, O, T, P, E, N, cuja origem é o palíndromo SATOR AREPO TENET OPERA
ROTAS. Cada uma das letras é acompanhada de um título. A disposição dos oito
títulos obedece à ordem da inscrição das letras no quadrado, conforme a incidência
da espiral que lhe é superposta, gerando uma estrutura não seqüencial.
No agrupamento por temas, desconstruímos o entrelaçamento dos temas e os dispomos
em ordem seqüencial, tema por tema, formando oito unidades, cada uma com seu
desenvolvimento contínuo. Isso possibilita um tipo de leitura seletiva, já previsto
pelo próprio autor.
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Você está em Leitura por temas » Tema T - Cecília entre os Leões [T7]
A área útil do primeiro andar, na sucursal do Banco, é menor que a da planta baixa: a parte central do pavimento abre-se num retângulo cujos vértices assentam sobre colunas de mármore; uma balaustrada cerca essa abertura. Minha carteira, no andar superior, toca o retângulo, do lado oposto à entrada principal. Por entre as aberturas dos balaústres caiados de branco, vejo uma parte da rua, a imponente porta de aço forjado, o movimento do público e a aglomeração junto aos guichês. Aparece, com a bandeja, Cara de Calo, o andrajoso e impassível servidor de café, no seu andar de reumático. Menino? Ancião? Afirma ter dado a volta nos espelhos, nos reflexos e nas repetições, reintegrando-se, velho, no mesmo corpo e na mesma idade do instante em que parte: "Sou a Coisa única". O som doméstico das xícaras vai atravessando os gritos dos caixas e da clientela, o tilintar dos telefones, o bater das máquinas, os apelos das campainhas, os disparas dos carimbos.
Desço os degraus - de mármore e gastos. Cara de Calo enche a minha xícara. A cabeça volumosa e os olhos miúdos, de macaco. Convido-o: "Deixa essa bandeja aí. Vamos pegar pombos lá em cima". Ele resiste, tentado e receoso: "Tenho que lavar a louça. Se estivesse hoje no Ascendente. Mas fora da casa e no Descendente? Posso ser despedido. Não. Hoje, não. Ordem do meu Legislador". Súbito, parece-me ver, perto do balcão, Cecília, há onze dias presente - uma surdez, uma dormência - em mim. Aproximo-me. Nenhum dos rostos aí agrupados lembra o seu.
Visita-me o Tesoureiro, na pensão. Cedo-lhe a única cadeira do meu quarto e sento-me na cama. Difícil reconhecer neste homem sob a lâmpada, grande e amedrontado, sempre tossindo, a mesma figura ríspida, de voz autoritária e gestos largos, que decide tirar a minha mãe da zona com os três meninos sem pai - eu entre eles, casa-se com ela e registra-os como seus, nunca admitindo diferença entre os adotados e os do próprio sangue, engendrados sem pausa naquele ventre que até o vento e as sombras engravidam. Mostra-me recortes, extraídos do Diário Oficial e relativos à complicada pendência em que anda envolvido. Cai em contradições e os seus argumentos não convencem. Interrompe as justificativas para dizer que o anteparo de papel na lâmpada está cheirando a queimado: pode causar um incêndio e já bastam os incêndios provocados nos canaviais. Amanhã, sábado, irei a Olinda? Censura-me por não fechar a porta do meu quarto a chave.
Com a desordem em que anda o Estado, baderneiros disfarçados de cassacos depredando usinas e invadindo cidades de foice na mão!
Os ladrões não dormem, Abel, todo cuidado é pouco.
Que será do país se João Goulart fizer o plebiscito e restaurar como quer o presidencialismo?
Vendo os livros na estante e o manuscrito espalhado na mesa, adverte-me.
É prudente ocultar, dos chefes, meu interesse por atividades que colidam com a vida bancária.
Silenciando, volta a olhar os recortes. Sobem, do térreo, as vozes de outros hóspedes, jogando baralho. Ele adormece na cadeira, o queixo sobre o peito. O corte largo da boca e a mandíbula quadrada, que acentuam nos bons tempos a energia da cara, agravam sua aparência de velho.
Vai devagar o ônibus, por causa do temporal. Através do vidro, úmido e embaçado, mal distingo as casas e as árvores. À minha esquerda, na outra fila de poltronas, com um impermeável, um guarda-chuva vermelho do qual escorre água e um livro salpicado de chuva, viaja Cecília. O livro tem na capa a cara de um negro, severa e pétrea, iluminada do alto com luz verde e o autor é Antônio Callado. A luz da tarde, diluída nas nuvens, na chuva, refletida nas poças e nos niquelados do ônibus, torna mais tênue a meus olhos a pele de Cecília. Seu perfil, que os reflexos fazem sempre mutável, projeta-se contra o vidro da janela e brilha como antiga medalha na penumbra. Cecília. Além, na rua - telhados e portões, outros ônibus, luzes, muros, vultos humanos -, tudo flui, impreciso, partes desconexas de um mundo efêmero e recordado, sobre o qual reinasse, alheia à passagem do tempo, sua figura sutil e temperada por uma espécie de audácia. À altura do Palácio Arcebispal, levanta-se, olha-me à sua maneira intensa e rápida, pede parada, o ônibus detém-se, abre-se a porta. Quando, sustendo o varão de metal, vai descer, volta-se outra vez para mim, agora parecendo haver-me reconhecido. Simultaneamente, como se um líquido espesso me cobrisse os olhos ou ainda como se inadvertido eu forçasse um estrabismo, vejo duas Cecílias e uma sobressai da outra, ligeiramente. Cecília fixada por uma objetiva trêmula. Aqui, porém, toda comparação é incorreta: as outras pessoas e o interior do ônibus continuam nítidos; e os dois rostos de Cecília, idênticos, não olham exatamente na mesma direção. O ônibus parte. Distingo, através do vidro, seu vulto junto às grades do Museu do Estado, esbelto e novamente uno, sob o guarda-chuva de cor viva. Desço na parada seguinte e venho à sua procura. Não a encontro.
Tarde de domingo em casa de Hermenilda e Hermelinda, ambas de vestido branco. Na rede do alpendre, repasso o álbum de fotografias e ouço distraído as histórias que me contam. O próprio fato de permanecerem entre as páginas do álbum os rostos, os vestidos, os gestos de princípios do século, agora que os modelos já estão velhos ou mortos e quando, de qualquer modo, nada mais existe, se existiu, daquelas horas cuja substância o universo da câmara escura pretende assimilar, acentua as fronteiras nem sempre compreensíveis, nem sempre perceptíveis entre esses dois espaços: um, ilimitado, contínuo, fugaz; outro, restrito, imutável. A circunstância de que não conheço nenhuma das figuras constantes do álbum (que nexo liga a Cecília estes modelos?), isola ainda mais, os retratos, de injunções alheias à sua realidade específica. Uma galeria autônoma de figuras de quem a substância não está no sangue, nos gestos, nas palmeiras, nas pedras, nos olhares, em nenhum dos impróprios truques com que aspiravam a viver no papel - e sim na luz, na sombra, no claro-escuro. Cantam os pássaros, sem continuidade. Cecília não aparece e nenhum de nós pronuncia o seu nome. Impossível dizer de onde me vem esta certeza de que todos a esperamos.
Andamos entre a rua Direita e a rua das Calçadas, de madrugada, eu e Cara de Calo, atirando pedras nos cães. "Agosto começou, Cara de Calo. Mês de cachorro doido!" Tentamos matar a pontapés as ratazanas que correm de um buraco a outro, assustadas, junto ao meio-fio. Uma mulher meio bêbada, vinda dos lados da praça do Mercado, decide acompanhar-nos, vaiando quando falhamos em nossas tentativas de caçar as ratazanas. Alguém abre a janela num primeiro andar e joga-nos garrafas vazias. Eu e a mulher corremos, ela escorrega e cai, ferindo-se nas pedras. Ajudo-a a levantar-se. Saímos abraçados, ela chorando alto, eu consolando-a. Cara de Calo acompanha-nos, distanciado, as pernas trôpegas. Aproxima-se correndo: "Vou embora". A luz do poste incidindo sobre os cabelos grisalhos. A mulher: "Quem é esse?" Explico: "É um velho. É um menino. A Coisa única".
O sono, de repente, vence-me. Laça os tornozelos e torna as pálpebras espessas. Os pensamentos rolam devagar. Subimos tropeçando os degraus escuros de um sobrado. Sobre a cama larga, um abajur grande e verde, de papel crepom. Vou sentar-me numa cadeira de vime. Estou curvado, as mãos nos braços da cadeira, quando tudo escurece. Sinto uma dor na perna, o ombro dormente e ouço dentro do quarto um barulho de ferragens rolando sobre lajedos. Existem a dor, a dormência, os lajedos, os ferros? Nas trevas, continua aceso o abajur de papel. Sua luz, porém, nada ilumina.
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