UMA REDE NO AR - Os fios invisíveis da opressão em Avalovara, de Osman Lins

Leitura por Temas: O ROMANCE Avalovara é estruturado em oito temas, indicados pelas letras R, S, A, O, T, P, E, N, cuja origem é o palíndromo SATOR AREPO TENET OPERA ROTAS. Cada uma das letras é acompanhada de um título. A disposição dos oito títulos obedece à ordem da inscrição das letras no quadrado, conforme a incidência da espiral que lhe é superposta, gerando uma estrutura não seqüencial.

No agrupamento por temas, desconstruímos o entrelaçamento dos temas e os dispomos em ordem seqüencial, tema por tema, formando oito unidades, cada uma com seu desenvolvimento contínuo. Isso possibilita um tipo de leitura seletiva, já previsto pelo próprio autor.

Imprimir tudo    Voltar

Você está em Leitura por temas » Tema T - Cecília entre os Leões [T9]

Foram-se Damião e Cesarino, um depois do outro. Restam os demais, ainda em torno da mesa. No alpendre, lúcido, respiro fundo o ar praiano. Sou, dos convivas, o único, talvez, que não sai da mesa um pouco embriagado nesta noite. O que me comprime o estômago, dando-me ânsias de pôr fora o jantar não é pois a bebida e não tem nome. As luzes do farol passam nos ares. Oscilam dentro da noite as igrejas de Olinda, o Seminário, os conventos, o Mosteiro de São Bento, oscilam sobre o chão. Lua cheia. A maré já deve estar subindo e pela madrugada a ressaca violenta de agosto vai derrubar outras casas. Por isso está inquieto, em minha mãe, o gato simiesco: ouço o vaivém da cadeira e as risadas. Aflige-a, creio, o silêncio em que agora vive a casa, quebrado por um ou outro jantar como o de hoje, pela tosse do antigo Tesoureiro e pelas notas soltas, arrancadas de algum instrumento mal encordoado. Dá-me, por vezes, o seu riso, a impressão de esconder a insensatez e a obstinação em não ver o lado feroz da vida. Contudo, negarei que a amo? Ocorre-me imaginar os indivíduos feridos de desejo e solidão que por volta de 1929 passam a Gorda, então na flor da idade, falsários, proxenetas, marinheiros bêbados, ladrões, malandros, gigolôs, contrabandistas, profissionais de falsos testemunhos, assassinos, olheiros da polícia. Interrogo estas sombras impossíveis, criadas no meu silêncio, buscando em vão antecedentes precisos. Nada vejo nas sombras e ninguém me responde senão ela - a Gorda. Ela é o meu passado. Mais é preciso para que eu a ame? Ainda: talvez seu riso não disfarce exatamente a loucura e a sua decisão de ignorar o que a destrói. Pode ser uma expressão de cólera e de medo ante a essência ininteligível do mundo; e de alegria ante as suas aparências. Pode ser. Então, assemelha-se nisto ao meu silêncio. Uma mulher (vista à distância, com os seus cabelos soltos, a Lua oculta nas nuvens, parece jovem) aproxima-se do portão. As ancas, não muito pesadas, flutuam sob o vestido. Creio que busca, indecisa, um objeto na bolsa, uma chave talvez, um endereço. Sendo a rua mal iluminada, não posso distinguir seus movimentos. Desço os degraus, vou saber o que deseja. Conduzem-me, além disto, projetos vagos: aquelas ancas provocam-me. Dois passos nos separam e nem então ela me olha. - Onde está o Tesoureiro? A pergunta parece dirigida a alguém que viesse andando na calçada. - Está em casa. Algum problema de aborto? Há no seu aspecto um certo ar de amante ludibriada, em busca de reparação ou ajuda. Isto, porém, não justifica minha pergunta estúpida. - Se o assunto fosse tão simples, eu não viria pessoalmente. Ergue-se, no chalé, um riso coletivo, descuidoso. Soam algumas notas do piano. Tudo semelhante aos sons de outros tempos. Algo parece faltar, entretanto, nos sons, no rosto da desconhecida, na voz magoada e vagamente perversa. Dou um passo à direita, rápido. Ela é mais velha do que supunho e o lado esquerdo do rosto não existe. Orelha, ossos, olho, supercílio: um buraco, um vão. Relação de espécie alguma entre as doenças humanas e a destruição desses tecidos. O que consome o rosto à minha frente é algo mais sutil e decerto mais voraz, o que o destrói feito uma chaga incurável é o nada. Cecília, ante a Matriz de Santo Antônio, a mão direita estendida (encontro casual e rápido), despede-se de mim. Céu cambiante, entre azul-pálido e roxo desmaiado. Restos da claridade diurna envolvem numa luz dourada a igreja, os edifícios profanos, seus vidros, o asfalto da Praça, os letreiros, as calçadas, a indistinta multidão e os nossos vultos. No esmalte dos veículos refletem-se as lâmpadas, acesas prematuramente. Cerca-nos o tumulto urbano desta hora. Rolam as portas de ferro nas lojas, fecham-se com lentidão os cofres-fortes, os escritórios vão silenciando. Os elevadores chegam lotados aos andares térreos. Acelera-se a marcha das pessoas na rua e os veículos arrastam-se. Rodeiam-nos, tensos, milhares de corpos, cada um no seu rumo. Todos, para todos, fechados em sua incógnita. Impossível conhecê-los. Impossível, ante realidade tão mutável, diversa e vasta, todo relacionamento, salvo reduzindo-a a uma noção abstrata. Portanto: deformadora e unificadora. Conhecer cada um que avança a nosso lado? Sentir cada um? Amar cada um? Retenho, entre as minhas, a mão de Cecília. Quanto tempo? Três segundos, cinco, o tempo de entrevermos o dourado dos entalhes na capela-mor do templo, de descermos um degrau, pouco tempo. Seus dedos estremecem e eu vejo-a, vejo-a duplicada. Vemos assim a própria imagem em certos espelhos ordinários: dois rostos superpostos, porém com um desvio mínimo entre esses reflexos idênticos. No vão exíguo do desvio, surpreendo (um clarão) a natureza recôndita de Cecília, sua identidade verdadeira. Um clarão. Deslumbrado e ao mesmo tempo com o dom irrestrito de ver, como alguém que sob um raio, em plena treva, desvendasse os mil rostos de uma multidão e também a sua história, vejo a espessura da carne de Cecília, povoada de seres tão reais quanto nós. Na substância da sua carne mortal, conduz Cecília o íntegro e absoluto ser de cada figura que atravessa a Praça, e não só dos homens e mulheres que agora povoam a Praça e os arredores, mas também dos que ontem a povoaram, dos que em maio ou junho a povoaram, dos que no ano findo a povoaram, dos que hão de a povoar ainda amanhã, destes e dos que em outras partes existem ou existiram, sim, nenhum está ausente em definitivo do corpo de Cecília. Cecília, deste modo, é ela e outros. Amando-a, o meu amor abrange numa espécie de múltipla e concreta individualidade o que em princípio é inapreensível e abstrato. Sua mão leve desliza entre as minhas. Frágil no corpo e no nome, Cecília dá-me as costas e deixa-me só. Assim, pois. Tom e som. Eu e eu e eu, Hermenilda e Hermelinda, eis-nos, ajudantes da fábula que começa a tomar corpo e na qual dois amantes, por via e modo nosso aproximados, começam a enredar-se, cheios de alegria, de paixão e ainda mais de espanto. Temperar o bandolim. Rasga o retrato na ribalta, roderico rude. Sol no cão, ar na mão. Não é? Enorme. As coisas que conquanto em volta os brados tantos. Ah, ondas do tempo e armadilhas rastejantes! Que faz a costureira com o que resta do fio? Cose, calada, a boca do cadáver. Aquém do além. Zás. Esta cantiga é descosida. Une-a um fio: a agulha. Rude roderico, ris do redingote da rã? Alcatruz. O Tesoureiro procura-me no banco. Põe no balcão a pasta, debruça-se e tenta conversar sobre o tempo. úmido o paletó à altura das axilas. Ouviu dizer que o panorama vale a pena ser observado lá de cima do prédio numa tarde assim. Subo com ele para a coberta. Céu sem nuvem, branco e os edifícios ardendo sob o Sol. Os pombos ciscam e esvoaçam. Ele fala sem parar. Oito anos, hoje, do suicídio de Vargas. Será que a gente encontra, morto, os nossos ancestrais? Não os parentes, mas os que povoaram a terra onde se nasce. Gostaria de encontrar o velho povo de Olinda. Os pioneiros que saíram de lá e povoaram toda a planície costeira por aí. Arquitetos. Religiosos. Guerreiros. Mas, não. Não vai encontrá-los. Alto, o prédio, para uma construção de dois andares. - Será mortal, Abel, atirar-se daqui? Melhor você descer. Ainda é novo no emprego. Precisa impor-se. - Não tem importância. Além disso, quero pedir ao senhor para falar com a velha. Ando pensando em ir embora. - Para onde? - Não sei. Não sei ainda. A sentença de que, insciente, sou o portador e em certo sentido o executante, tende a ser conjurada. Com o meu projeto de deixar o Recife, Cecília, condenada desde a noite em que me esquivo à morte na cisterna, talvez receba o indulto. Torna o Tesoureiro, cego a essa espécie de ilações: - Sua mãe não vai gostar. Mas é isso mesmo. Quanto a mim, veja bem, não vou interferir nos planos que tiver. - Isso, ninguém pode afirmar. - Não, não. Estou certo do que disse. Já desempenhei a minha parte. Agora, saio da cena. Arrepende-se do que pretende acrescentar? Dá alguns passos e fixa a linha distante das águas: - Como é grande o mundo! E isto pouco representa. Quero dizer: perante a vida eterna. Não é, Abel? Mas hoje só se pensa em greve. Greve e roubo. Tudo tão inseguro! Estivadores, brilhando de suor, transportam grandes sacos na cabeça, os guindastes trabalham. Passa o trem do cais, devagar. Seu apito, nasal e poderoso, o mugir de um grande boi de ferro. - Bonito, isto aqui. Bem... Vou para casa. Não agora. Quando terminar a cobrança. Adianto-me e olho-o de frente. Tresanda a comida velha. O colarinho puído. Torno-o pelo braço. Seu hálito lembra o odor úmido e triste de um buraco na terra. - Tenha cuidado. Uma mulher perguntou pelo senhor. - Quando? - Na semana passada, depois do jantar de aniversário. Tinha uma banda do rosto vasada. Ele baixa a cabeça e desconversa, pensativo: - Abel, faz quarenta e três anos que encontrei o meu bisavô e nem assim esqueci. Ele morre com os dois braços e me aparece com um, tempos e tempos depois. Trazia aquele chapéu que nunca possuiu, todo coberto de penas amarelas. Minha avó garantia: "Nunca". Como entender isto? Hein? Olhou a minha avó, assombrado, quando passou no quintal. Não o conheci em vida. Era moço agora e ela uma velha. Onde foi mutilado e onde, já morto, arranjou o chapéu? Quem pode lá saber onde essa mulher que você viu deixou um lado da cara! Por aí. Mortos ou vivos, vamos perdendo ou adquirindo coisas pelo mundo. Não é mesmo?

© Copyright 2012 - UMA REDE NO AR :: Os Fios Invisíveis da Opressão em Avalovara, de Osman Lins. All rights reserved.

Centro Universitário Ritter dos Reis - Rua Orfanatrófio, 555 - Cep: 90840-440 - Porto Alegre/RS - Brasil | Telefone: +55 (51) 3230.3333