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Você está em Leitura por temas » Tema T - Cecília entre os Leões [T8]
Minha irmã Lucíola, com seu perfil e seus olhos de cigana, a Mauro, nosso irmão:
- Por que não trouxe a esposa? Podia ajudar a lavar os pratos.
Cesarino mostra os dentes podres e ergue o rosto ceroso, com olheiras roxas, que tornam ainda mais neutro o seu olhar de cadáver:
- Damião, estou admirado. Que vai dizer seu patrão, o dono do táxi? Você, um empregado tão zeloso, parar o serviço mais de duas horas, para jantar com a mãe que nem ésua?
Minha mãe repreende Cesarino. O gato, no seu peito, volta para ele a cabeça de macaco. Os olhos claros de Dagoberto, olhos de homem destinado a morrer tuberculoso (contemplarão, com espanto, a carência de sentido das nossas vidas?), também se dirigem a Cesarino:
- Deolinda Ferro-Velho se queixou de você. Deu-lhe dinheiro para comprar uma passagem na Rodoviária e você nunca mais apareceu. Isso é papel?
- Aquilo é uma vaca - responde Cesarino.
Mauro, que deixou passar a observação maldosa de Lucíola, fala-lhe:
- Não me conformo com uma coisa. É seu primeiro marido, o falso fabricante de moedas falsas, fugir com aquela dona, deixar a roupa na beira do rio, pra fingir que morreu afogado - e depois baixar numa sessão espírita.
Lucíola, os olhos baixos, finge não ouvir e ignora as risadas. É a que menos se distancia, hoje, dentre as caras agrupadas em torno desta mesa e sobre as quais os anos trabalham duplamente, com duplo poder de erosão, do seu próprio modelo na fase do esplendor e da ausência de preocupações. Mesmo o rosto de Isabel, mesmo o seu, curvado sobre o piano e meio oculto entre os cabelos louros, sugerindo, aos treze anos, inteligência e mistério, reflete agora a seu modo o espesso e obtuso rosto do marido, vinte e um anos mais velho do que ela, aposentado, contrabandista amador, ex-foguista de navio mercante e que se serve empurrando com os dedos a comida para o garfo.
Aqui estamos, obedecendo a um hábito persistente e inútil, para festejar o aniversário da nossa mãe. Em que evoca este jantar ainda cheio de risos mas impregnado de melancolia, as ruidosas comemorações anteriores a 1950? Brilham todas as luzes do chalé e o Tesoureiro preside a mesa. Tosse, porém, vez por outra e fala sempre que pode no seu novo emprego: fazer cobranças para uma empresa de reputação mais duvidosa que a dele.
- Quero ver o que vão dizer os meus inimigos, quando souberem que estou trabalhando com dinheiro e que os patrões têm toda confiança em mim. Uma confiança cega. Cobro mais de cinqüenta prestações por dia. Honestidade vale uma fortuna, principalmente hoje que o governo vive estimulando o roubo.
Minha mãe, à sua direita, procura desviar o assunto, fala da morte de Marilyn Monroe:
- Que deu naquela dona? Uma mulher que tinha tudo.
- Era uma vaca - atira Cesarino. Uma vaca igual às outras.
O Tesoureiro tosse e reforça o que dizia, alheio:
- Confiam em mim como num filho.
Qual dos filhos confia nele? Sequer o vêem e de todos, carnais ou não, só eu - apesar de tudo - ouço o que diz. Os restantes - Mauro, Cesarino, Lucíola, Damião, Dagoberto e Isabel com o marido - apenas erguem as cabeças para servir-se de omelete ou cerveja e trocar palavras pouco amigas.
- Querem passar o molho? (É o marido de Isabel, juntando, com o polegar, o arroz no garfo, ávido.)
As travessas não sustêm, como no período da Tesouraria, cabritos e leitões ao forno, brilhantes de unto e fartamente guarnecidos; nem grandes lagostas rubras, nadando em molho de coco; nem postas de cavala a escabeche; nem dourados com recheios preciosos. Faltam os vinhos finos; os queijos do Reino, redondos, vermelhos e tão odorosos; o licor de pitanga, fabricado pelas monjas de Santa Dorotéia; as cinco ou seis espécies de doce. A louça inglesa não é uniforme e a toalha branca de damasco começa a encardir.
Cesarino, que bebe sem parar, pergunta a Damião qual o seu próximo grande papel no teatro, se entregar uma carta ou trazer um copo dágua.
- É melhor trazer um copo dágua para uma condessa no palco do que fazer mandados para aquelas catraias da rua do Apoio, como você.
Cesarino defende-se, impudente:
- São minhas amigas.
Mortos Eurílio e Estêvão; Leonor num convento da Bahia, após três noivados desfeitos; Cenira num subúrbio do Rio de Janeiro, casada antes dos dezoito anos com um dentista sem clientes, comendo o pão amassado pelo diabo (seu violino descola-se, sem cordas, numa das muitas gavetas do chalé); Augusto no oco do mundo há oito anos, sem dar notícias e sem que se saiba ao menos se ainda vive; Janira foragida da polícia, em algum cabaré de quinta classe, depois de fazer o que fez. Mudos, com o violino de Cenira, o bandolim de Leonor, o clarinete de Damião, a viola de Mauro, a flauta de Eurílio, o piano East Coker. No alpendre ou nas outras dependências, hoje iluminadas, nem sombra dos amigos - tantos - do Tesoureiro; dos rapazes e moças, companheiros nossos, que invadiam a casa nesses dias, nenhum. Nós, mais ninguém, participando desta aparência de festa e exibindo uma alegria que é apenas a versão maligna da outra.
Mauro volta para mim os óculos grossos e quase negros:
- E o nosso letrado? Sempre inédito, mon amour? Não foi mais à Europa, ver as francesas?
O seu riso espasmódico e mordente secciona as palavras. Cesarino acompanha-o nas perguntas, mostrando os incisivos estragados:
- Por que não escreve uma novela para o rádio sobre a sua esposa, Abel? Ouvi dizer que dá dinheiro.
A flauta de Eurílio faz-se ouvir, da cova ou do puteiro onde morre varado de balas.
- Ainda ontem, o chefe falou comigo. Disse que nunca teve um cobrador igual.
Vinda quem sabe donde, cai na mesa a voz nasal de nosso irmão Augusto, há oito anos sumido: "Vocês me dão notícia de Janira?" Leonor, do claustro, ereta numa cadeira de espaldar alto: "Um mês depois de casada, ganhou a zona, Augusto. Deus a proteja. Matar os próprios filhos! Dois!" A voz de Janira, branda e monótona, de virtuosa moça de família: "Morreram antes que tivessem um nome. Isso é morrer? Afinal, eram meus. Se pudesse, matava pai e mãe. Não pedi para nascer".
- Sua mulher já sabe ler? (Isabel a Mauro.) Corre que você fez cartas anônimas a você mesmo, dizendo que ela lhe punha chifres. Para ter um pretexto de largá-la.
Mauro ri, assentindo. Ecoam risadas na mesa.
- Basta dizer que eles nem contam o dinheiro, quando eu entrego a cobrança. Mandam um menino conferir.
- Quanto está ganhando? - indaga o marido de Lucíola.
Minha mãe pergunta se ele ainda está aposentado.
- Claro.
- Pensei que tinha arranjado um emprego de fiscal.
Com sua voz de tenor, um dom desperdiçado, canta Dagoberto: "Noite alta, céu risonho./ Aqui tudo é quase um sonho..." Esses irmãos. Também os outros, os que andam pelo mundo ou morrem desastradamente, a irmã que pare os filhos e enterra-os no quintal, são meus irmãos apenas de sangue? Não nos liga, em nossos desacertos, um projeto comum? Marca-os, talvez, o mesmo impulso obscuro que me move. Com outras formas, porém. Outros nomes. "Só tu dormes: não escutas/o teu cantor..."
- Vou na cozinha comer a sobremesa - avisa Damião. Preciso trabalhar. Afinal, meu patrão confia em mim. Devo retribuir.
- A que horas você lambe os ovos dele?
- Na mesma hora, Cesarino, que você lambe o rabo daquelas marafonas.
- Feliz de você, quando casar, se sua mulher tiver um rabo limpo como aqueles.
O animal, no ombro de mamãe, espreguiça-se com o dorso de gato e salta para a mesa, a cauda erguida. Ela censura-nos:
- Bons irmãos são vocês. Não vejo nenhum lembrar-se dos que estão mortos ou ausentes.
- Que se danem.
Isabel:
- Por que, Damião?
- Por que sim, que se danem.
- É uma firma que ainda vai crescer muito.