UMA REDE NO AR - Os fios invisíveis da opressão em Avalovara, de Osman Lins

Leitura por Temas: O ROMANCE Avalovara é estruturado em oito temas, indicados pelas letras R, S, A, O, T, P, E, N, cuja origem é o palíndromo SATOR AREPO TENET OPERA ROTAS. Cada uma das letras é acompanhada de um título. A disposição dos oito títulos obedece à ordem da inscrição das letras no quadrado, conforme a incidência da espiral que lhe é superposta, gerando uma estrutura não seqüencial.

No agrupamento por temas, desconstruímos o entrelaçamento dos temas e os dispomos em ordem seqüencial, tema por tema, formando oito unidades, cada uma com seu desenvolvimento contínuo. Isso possibilita um tipo de leitura seletiva, já previsto pelo próprio autor.

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Você está em Leitura por temas » Tema T - Cecília entre os Leões [T5]

Hermelinda e Hermenilda trespassam-se entre si. Observo-as, todo princípio de mês, ante os balcões de pedra da delegacia fiscal. Usam dentaduras postiças, sendo uma guarnecida com caninos de ouro. Tanto metem na boca uma peça como a outra. Vivendo sempre juntas, perderam, distraídas, o controle que exercemos sobre o corpo. Ambas deixam-se invadir e invadem a irmã. Venha uma de brincos ou, em dias mais frios, com um fichu em torno do pescoço. Basta que se cruzem no saguão, uma através da outra - e já os brincos mudam de orelhas e o abrigo de espáduas. Não só os brincos, nem só o abrigo, ou os anéis baratos. As orelhas que elas trazem em maio aparecem em junho nas cabeças opostas; trocam de língua, de voz; seus quatro olhos mudam sempre de órbitas: uma transmigração se cumpre, uma troca perpétua, entre esses corpos mirrados mas ainda eretos. Arrisco-me a supor que os pesadelos de uma assustam a outra. Hermenilda? Hermelinda? Constato, ao travarmos relações, que se interpelam usando livremente aqueles nomes. Acabo não sabendo com qual das duas falo. Apesar do que ambas revelam de pouco habitual, e por mais que deseje estudá-las na intimidade, observo-as ao largo. São elas ("Qual? As duas?") que me abordam, afáveis, junto à caixa, dão-me o endereço e instam para que as visite, não em conseqüência de algum incidente - favor meu, gentilezas - que as lisonjeasse, mas por lhes caber uma função: a de me desviarem - a mim, sobrevivente da cisterna - de caminhos afastados de Cecília, pondo-me, para alegria nossa, meu luto e perdição dela, aqui, onde a sua existência ser-me-á anunciada e onde ela mesma, afinal, surgirá, abrirá o portão, ingressará no alpendre com seu andar de lavandeira. Prossegue a música de Hermelinda, a que os pássaros respondem. Levanto-me da rede. Olho de uma em uma as gaiolas de junco, fabricadas pelas velhas, algumas de formato original, com suas aves cantantes (corto e cruzo nomes de pássaros: papa-campinas, xeúnas, ós, galos-decapins, rios, curinás, caxéus, sagrabiás); rodeio a mesa na sala de jantar, entro na oficina: gaiolas não terminadas, o rústico instrumental, o perfume silvestre de verniz e de madeira lixada; em toda parte a evocadora valsa de Hermelinda, em toda parte as gargantas ativas dos pássaros; aventuro-me à peça onde ficam o guarda-roupa, a grande cama de casal, a cômoda: em cima, o santuário, frascos de remédio, um mealheiro; o soalho da casa, de ladrilhos vermelhos, deve ter sido lavado nas primeiras horas da manhã; evitando, ociosamente, pisar entre um ladrilho e outro, torno à sala de jantar e vejo sobre a mesa, vejo, no centro de um pano redondo de filé, um álbum de fotografias. Não o percebera? Com decisão e rápido, como se no alpendre e nos quartos andasse à caça do álbum, apanho-o. Volto para a rede, examino-o. Obras do tempo em que os fotógrafos, não captando o artifício existente na impossível naturalidade dos modelos e ambicionando dar uma impressão de vida aos seus trabalhos, fixam atitudes e gestos só aceitáveis longe da objetiva. O amarelamento das imagens e os danos das traças contestam a dolorosa aparência de ação. - De quem são estes retratos? - Pessoas. A maioria, aí, já conheceu a dextra. Teve o beneplácito. - Sempre se recebe o beneplácito? - Depende dos malfairos e da contrição. Dois meninos de joelhos, sérios, no dia da primeira comunhão. Homens de C éu e bengal , lado a lado, uma pe na estendida e o o har distante, como se a câmara os surpreendesse num escasso silêncio entre diálogos profundos; mulheres sentadas, otovel apoiado numa esa de és etorcidos; fechando graciosamente um leq entre as ãos; moças de meias n gras e longos vesti claros, grande ç branco nos cabelos, sustendo um livro com uma frol entre as páginas e os o os voltados para mim; outras em meio a pedras e almeiras reais refletidas no telão ao fundo; ao lado de cães; famí s reunidas, cada qual olhando numa direção: no centro do grupo, um casal de crianças com chapéus de al vestidos de mar , segurando um ar ... Em meio a essa galeria composta e descorada, onde já inclusive se dissolve a identidade dos modelos, salta-me de súbito entre as mãos uma foto pouco hábil, datada de um mês, tirada em algum espetáculo circense: uma jovem sorrindo para a câmara, tendo nos braços um leão ainda novo, amordaçado. No verso, em letras achatadas e vagamente pretensiosas, esta inscrição: Cercília não tem medo de leões. 15, junho, 1962. Cortado, porém, o r do nome. Ouço (na estrada?) sons precipitados, cruzados, rodas e eixos, uma estrutura pesada desmembrando-se. O álbum estremece em minhas mãos. Movimento algum na estrada: a mesma paz. Mas Cecília, a que não tem medo de leões - as grades e a sombra vertical das grades barrando seu vestido amarelo -, abre o portão. Inicia, abrindo-o, uma frase metálica: o tilintar da pulseira no antebraço frágil, com pequenos astros e moedinhas de ouro, o ranger do ferro nos gonzos não lubrificados, o badalo de bronze na campainha de cobre, suspensa de um arco flexível de aço. Cai a aldrava no encaixe, pesada. O mesmo ruído, o mesmo, de uma jaula cerrando-se. Cecília, a Madona dos leões?

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