UMA REDE NO AR - Os fios invisíveis da opressão em Avalovara, de Osman Lins

Leitura por Temas: O ROMANCE Avalovara é estruturado em oito temas, indicados pelas letras R, S, A, O, T, P, E, N, cuja origem é o palíndromo SATOR AREPO TENET OPERA ROTAS. Cada uma das letras é acompanhada de um título. A disposição dos oito títulos obedece à ordem da inscrição das letras no quadrado, conforme a incidência da espiral que lhe é superposta, gerando uma estrutura não seqüencial.

No agrupamento por temas, desconstruímos o entrelaçamento dos temas e os dispomos em ordem seqüencial, tema por tema, formando oito unidades, cada uma com seu desenvolvimento contínuo. Isso possibilita um tipo de leitura seletiva, já previsto pelo próprio autor.

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Você está em Leitura por temas » Tema T - Cecília entre os Leões [T6]

O leve e ritmado som dos sapatos de Cecília, com saltos de latão, percute no piso do alpendre. Passos rápidos, de quem necessita andar muito e vive com uma certa urgência. O homem, no outro lado da rua, baixa o braço e some com os meninos. Desce a mão de Hermelinda, firme, sobre as cordas do instrumento. O gato, na porta, pousa a pata no chão, os pássaros soltam o canto. Hermelinda vara o círculo de leões que ameaça cecília e beija-a no rosto. Também o canto dos pássaros soa, nítido, metálico. Cecília, com um sorriso, faz os leões subirem nos telhados balançando a cauda. O que conversam, Hermenilda e Cecília, não escuto. A língua de Cecília: leão lascivo. Hermenilda faz um gesto em minha direção e indica-a: "Chama-se Cecília. Trabalha no Hospital Pedra II. Serviço social." Ela inclina a cabeça, fita-me um instante e desvia o olhar. Volta a fitar-me rápida (abelhas solitárias, esses olhos, riscando as superfícies.) "Abel é homem das letras e dos livros. Filósofo. Conhece o outro lado da Terra." Zumbem leões negros e velozes nos olhos de Cecília. Cecília senta-se no banco de vinhático ao lado de Hermenilda e cruza as pernas delgadas. Visível a ossatura dos joelhos. O silêncio de Cecília é atravessado por leões. Assim, frente a frente, com a nossa ajuda malsã, eis Cecília e Abel. A eles cabe apertar o laço por nós urdido. Quiséramos estender entre ambos uma distância qualquer para que não se ligassem. Quiséramos? Desejo vão. Lançado está o grão e com ele alguns eventos sobre os quais nenhum domínio havemos. Abel considera os galernos de Cecília e seus contrários. Vê a discórdia entre a branda curva dos ombros e a falta de curvas nos quadris; entre os seios grados (de bicos tensos) e o peito do pé com seus tendões, um pouco largo à altura dos dedos; espanta-o que venha de Cecília o eco de inúmeros ramos delicados, secos, cautamente pisados e que ao mesmo tempo algum sinal no seu rosto sugira determinação; e, mais ainda, que essa figura alada e plena de graças seja sustentada por um impalpável arcabouço de virilidade. Decerto, isto é ainda o início. Sem que nenhum dos dois saiba, ou escute, duas bocas, mágicas, falam entre si. Logo ele a verá de um modo novo, vária e múltipla, habitada na carne por visões ou corpos - e sob reverberações, como aclarada pelo Sol rebatido em mil facas oscilantes. Procurar na vida o rumo é igual a buscar, num palheiro, a agulha que pode ter caído em outra parte. Retiro da gaveta, na pensão, as páginas escritas da história que venho elaborando. (A gaveta exala um odor inexplicável e nunca dissipado de pólvora.) Começam a definir-se, no papel, os perfis das quatro irmãs, todas septuagenárias e cada uma ansiando por sobreviver às outras. Para quê? Não sabem. Vivem na mesma casa - isto me permite acentuar o ódio com que se espreitam entre si. Mas o cenário onde se movem - o chalé de Olinda, reproduzido com a possível exatidão - continua a desgostar-me. Tento, em vão, evocar o labirinto de quartos e alcovas, com roupa pendurada atrás das portas, às vezes cheirando a virilhas. Pinto de azul o forro de madeira, aqueço no fogão de pedra as panelas desmedidas e ladrilho o piso com mosaicos. Introduzo o mobiliário desigual, que aumenta junto com a minha família e se deteriora usado pelas velhas. (Tudo, às vezes, no mundo, cheira a verrugas, a cascas de ferida e a unhas secas.) Deixo de mencionar os instrumentos de música negligenciados nas gavetas, o piano East Coker, os jarros pomposos, o enorme espelho entre arandelas na sala de visitas e o retrato oval de casamento. Mantenho, com alguma ênfase, a estampa alemã do tempo de Holderlin, representando três jovens fiandeiras. Faço ainda entrar o sol pelas bandeiras de vidro - colorido no chalé real e branco no fictício. Represento, afinal, com mão grosseira, o seu interior, onde as cortinas de renda com cenas de caçadas ondulam ao vento terral. Mais inábil a extensa descrição do exterior. O teto de duas águas, inclinado sobre as paredes laterais, o beiral sombreando os oitões e a fachada, os lambrequins de um azul desbotado, acompanhando a linha dos beirais e alçando-se em frontão com um mastro torneado no vértice mais alto, a flor geométrica, posta à maneira de tímpano no meio do frontão, cercada por um círculo e tendo ao centro uma esfera azul de vidro, as molduras brancas das janelas, o alpendre à esquerda também com lambrequins, cada pormenor (e, mais do que todos, a pintura nas paredes, em ocre, anil e branco, imitando cubos transparentes, disto resultando uma inútil aparência de relevo) exige-me centenas de palavras e acaba sempre numa construção desmesurada, sem peso, cujos telhados flutuam como asas. À beira da cisterna, de joelhos no cimento limoso, tento ver meu rosto dentro da água. A água, que parece dura, petrificada pela ausência de peixes e de vozes, olha-me baça - o olho de um morto. Reflete apenas linhas imprecisas, a interrogadora mancha da cabeça contra o céu nublado. Cuspo na minha cara, no vago reflexo da minha cara e levanto-me. A água da cisterna e o fartum de percevejos. Na praia dos Milagres, perto, as ondas abandonam - fortes, mesmo na vazante - construções de que só o traçado ainda sobra. A ferrugem e o ar marinho corroem o teto de zinco. Faço o trajeto em aclive entre a cisterna e a casa, sem pressa, alvejando com pedras apanhadas no chão os troncos das mangueiras, todas pegando uns tons de árvores bravas. Salta acaso entre essas árvores, quando entediado ou supérfluo, o gato com cabeça de macaco noturno? Paro a certa distância do chalé, no qual durante anos ecoam as vozes da família e de onde agora não vem som algum. Jogo pedras nas colunas do alpendre e no terraço. Minha mãe aparece, gorda, sustentando um ferro de engomar. Repuxa a boca miúda, de lábios estreitos, no seu gesto costumeiro: - Sim, senhor! Trinta e dois anos e ainda jogando pedra nas coisas. Agora é assim que se anuncia a chegada? Entra, homem. Vem almoçar? Não apareceu no outro sábado. Beijo-a no ombro esquerdo, onde tem a cicatriz. Borrifa água de arroz nos lenços que passa a ferro: "Dos luxos do Tesoureiro, sobra isto. Lenços engomados." "Ele não é mais Tesoureiro." "Pensa que se conforma? Fala dia e noite na readmissão. Tinha de acabar nisso. Como era Tesoureiro na porcaria de um Banco, acreditava ser Tesoureiro do mundo. E você, meu filho? Na outra semana, estive pensando: cinco anos que assumiu o seu emprego. O tempo voa." "É verdade." O gato com cabeça de macaco e que ela traz no corpo desde o nascimento salta para a tábua de engomar. Contempla-me, daí, com seus olhos súplices e afetuosos: duas contas roxas.

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