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Você está em Leitura por temas » Tema T - Cecília entre os Leões [T11]
A caminho da Delegacia Fiscal, atravesso a Avenida Rio Branco e vejo uma aglomeração perto da Ponte Buarque de Macedo. Automóveis e ônibus arrastam-se, ouço comentários sobre o homem atingido por um caminhão: continua estendido sobre o calçamento, no Cais do Apolo. Sigo a Rua da Guia, em direção à Praça do Arsenal da Marinha. Entro, porém, à esquerda, saio no Cais e me aproximo do ajuntamento. Coberto de jornais, ao sol das duas horas, o morto, com a paciência dos mortos, aguarda que a Polícia também chegue. Quando morreu? Entre onze e meio-dia. Por que continua aí? Faltam viaturas na Polícia. Sabe-se quem é? Afasto-me e dirijo-me à Delegacia. Hermelinda e Hermenilda já sabem do acidente. Às quatro horas, de volta, refaço meu caminho pelo Cais do Apolo. O infeliz continua na rua, cão sob o sol agora menos ardente, ainda à espera de que venha, para removê-lo, um carro da Polícia. Os veículos transitam mais depressa e poucos passageiros notam a aglomeração, que diminuiu. Gastos nas solas os sapatos da vítima. Rostos aparecem nas janelas mais altas do edifício fronteiro, mãos displicentes apontam para baixo. Desaparecem. Começou a ventar e os jornais que cobrem a cara do desconhecido adejam sob pedaços de tijolos. O Tesoureiro tem calças iguais a estas rasgadas na queda. O Sol reflete-se nas águas oleosas do Capibaribe e ilumina, longe, do outro lado da Ponte, as árvores da Praça da República, as estátuas perfiladas sobre o Forum, os jardins do Palácio do Governo, por trás da Casa da Guarda. No Banco, chamo a Polícia. Nenhum dos servidores que atende aos meus telefonemas se ocupa de cadáveres jogados na rua: todos mandam ligar para outro número. Damião aparece, desorientado, à entrada da sucursal, interpela um empregado e toma a direção do elevador. Antes de falar com ele, já sei quem é o acidentado na rua. Pergunto-lhe, enquanto descemos, como pode ser possível que o Tesoureiro fique jogado na via pública, sem que a firma onde ele trabalha saiba do caso e tome providências. Damião responde-me lacônico: "Ele foi demitido. Faz três dias." Cecília, por enquanto, nada sabe.
Vamos pela rua do Pombal, às duas da manhã, Dagoberto e eu, no táxi de Damião, seguindo a ambulância com o corpo mutilado do homem que assume ser pai e protetor de quem só possuía mãe e nenhuma proteção. Dagoberto, no banco traseiro do táxi, canta em voz baixa e Damião range os dentes. A ambulância, com a sirena ligada, entra na Avenida Norte. Doem-me os pés e a cabeça roda. O estômago vazio, animal oco e machucado. Impossível comer, depois de não sei quantos cafés com gosto de formol, açucarados, frios, engolidos no Instituto de Medicina Legal. Febre? Agora, a rameira de 1930 está viúva e só. Que farão, ela e o gato híbrido, quando chegar o corpo? Tem dezenove anos e quase cinco de zona, com um ombro cortado de navalha, jóias de plaquê, três vestidos, um grande jarro amarelo, dois cancros venéreos, um par de sapatos prateados e uma granada escondida sob a cama, com espoleta, quando o futuro Tesoureiro a conhece, tira-a da zona e casa-se com ela. Que o atrai? O insensato riso com que enfrenta as coisas. Corte de navalha, doenças do mundo, paixões dos homens, vestido de noiva, tudo ela cauteriza, queima na zombaria:
- Imaginem se uma roupa branca ou um papel carimbado vão fazer com que eu deixe de ser puta. Vamos falar a verdade: eu era puta geral e agora sou sua. Você abre a carteira e eu as pernas. O jogo é o mesmo de antes, só que mais descansado. Para que enfeitar o maracá? Pensa que agora vou bancar a senhora dona e arrotar puritanismo? Dar conselhos às moças? Ah! Tire o cavalo da chuva. Nada mais enjoado do que uma cadela das ruas feito eu, querer bancar o cachorro de São Roque.
Raul Nogueira de Albuquerque e Castro, o Tesoureiro, ao tempo dos fogos de artifícios e de alpendre enfeitado com lanternas, compraz-se em repetir, entre um pigarro e outro, dando palmadas nas coxas, essas palavras da Gorda. Agora, serrado o fêmur, segue dentro da noite pela Avenida Norte. Meus olhos pesam e todos vamos em silêncio. Em que desconhecido incrustarão o osso que cedemos? Obseda o Tesoureiro o aparecimento do seu bisavô, sepultado íntegro e voltando mutilado, com um chapéu de origem ignorada. O braço do bisavô e o seu fêmur vagam pelo mundo. Rodamos na extensa reta da Cruz Cabugá, traçada sobre manguezais, entre aterros negros, mais negros sob o céu encoberto. Palha no estômago, a língua espessa e salgada, seca, uma palmilha velha. Damião rompe o silêncio: "Que aporrinhação. Ainda estávamos lá, não fosse a história do osso". Ninguém responde. Abro o vidro do carro; o vento grosso sopra-me na cara. Desligaram a sirena da ambulância. Janelas acesas, poucas, no Hospital de Santo Amara. Rasa e infestada de mocambos a bacia do Rio Beberibe. Da lama, com os seus jardins de mangues, de mariscos, de caranguejos, vem um cheiro de carniça. Como seria triste, Raul Nogueira de Albuquerque e Castro, se você - que acende, nos anos de fartura, todas as luzes do chalé, enquanto o violino de Cenira, a viola de Mauro, a flauta de Eurília e as vozes de todos desafiam o pétreo som da ressaca na praia dos Milagres - visse nesta madrugada o trajeto do seu corpo, esta viagem no silêncio e na escuridão! Mal se distinguem, na sombra nevoenta, os raros edifícios, a Escola de Aprendizes Marinheiros, a Fábrica Tacaruna. Damião ultrapassa a ambulância para indicar o caminho. Ânsias de vômito: engulo em seco. Entramos na cidade adormecida. O chalé, como nas grandes noites, está com as lâmpadas acesas e as janelas abertas. Minha mãe vem ao nosso encontro, calma, um xale negro atirado sobre os ombros, seguida por Lucíola, Isabel e alguns estranhos. Apenas recomenda:
Tenham cuidado com ele. Já machucou-se demais. Corro para o banheiro. Livrar-me do bicho oco (não: bebedor de lama, comedor de palha) que me ocupa o estômago. Um sabor de fel enche-me a boca, sinto o amargor na garganta e jogo com violência para o buraco do vaso sanitário todas as pragas que sei. Jogo-as contra o Tesoureiro, ignorando que as pragas são menos contra ele que contra a sua morte, isca desviando-me para a condenação e o fim prematuro de Cecília. Não poder, eu, vomitar-me, com toda a minha lama e a lama da Terra!
Gente no alpendre e até sob as mangueiras, à sombra. Isabel aproxima-se da Gorda. Apesar do vozerio surdo e ondulante (cortado, a espaços, por soluços ou um riso sufocado), ouço-a dizer: "Chegaram." Do corpo de mamãe salta o animal, lesto, esgueira-se por baixo do ataúde e corre para as árvores, a cauda longa dobrada sobre o dorso. "As duas?" "Mãe e filha." "Então, vou para dentro. Talvez elas não queiram ver-me." Volto-me: "Fique." Há um movimento das pessoas, um revoar de vozes logo extinto, um arrastar de cadeiras e de sapatos no soalho. A mãe do Tesoureiro, conduzida por Dulce, surge e detém-se na soleira, não de um modo claro ou conclusivo, sua vacilação é necessária e em certo sentido calculada, pausa idêntica à pausa com que separamos, na leitura, certas palavras entre as quais não há pontuação, acentuando, com este breve e sutil retardamento, a importância da expressão adiada. A velha, com o treino de viver, tem a noção exata da solenidade que marca este momento. Sua hesitação não me ilude: é uma ênfase e ela cumpre-a com exatidão.
Adianta-se e contempla o Tesoureiro. Aqui, porém, de nada lhe servem o treino e os anos: este, diante de si, é o seu filho. Entregue à improvisação do sofrimento, áspero, indiscutível e urgente (eis o morto e sua indiferença), toma-o pela lapela do casaco e o atrai a si. Não, tenta fazê-lo. Como quem fosse dizer, com veemência: "Ânimo, homem!", enquanto o rosto, falto de esperança, indaga: "Será verdade?" O gesto perde-se, recusado pela rigidez do cadáver. Ela insiste ainda. Mas ergue as mãos e assenta-as, inúteis, à beira do caixão. As rugas, na lapela do morto, marcam o seu impulso burlado. Dulce rodeia o caixão e crispa os dedos sobre a ampla bolsa de camurça. Fundo e marcado o vinco da boca. Pela mágoa? Pela luz das velas? Há quantos anos não põe esse turbante descorado (era lilás), ornado com uma falsa ametista? Tira da bolsa um búzio e o depõe sobre o ventre do irmão. O silêncio, como que à distância, respeitoso - crianças de mãos dadas, um círculo -, rodeia as duas mulheres e o morto. Esta, para todos, a cena axial. Quanto nos iludem as evidências! O morto e o silêncio na sala, a chegada e os atos de Dulce e da mãe, a concha (nela, Dulce e o irmão talvez ouvissem, na infância, o rumor das mesmas águas, o Tempo, com os eventos do mundo, incluindo esta hora), tudo apenas coincide - e só coincide com um evento maior, a ponto de cumprir-se. Um evento discreto. Ressoam passos no alpendre, leves, aproxima-se alguém com saltos de metal e não vem só, Dulce tira da bolsa o búzio nacarado, grande como duas mãos cruzadas, com a sua espiral misteriosa - e o depõe com ternura sobre o umbigo do morto. Então, levanto os olhos. À porta, em meio aos vultos que as velas e a luz da manhã muito clara, filtrada pelos vidros alegres das bandeiras, banham numa espécie de irrealidade, vejo, entre os vultos permutáveis de Hermenilda e Hermelinda (mas vejo apenas o que posso ver, a cândida superfície do evento), Cecília a alguns passos de mim, presa, após mil voltas, na rede cuidadosamente urdida, Cecília, com seus cabelos curtos, seus olhos luminosos, seus quadris estreitos, suas pernas delgadas, igual a ninguém, atraída pelo morto - esse chamariz - e lançada de uma vez por todas na área das alegrias e males dos quais me cumpre ser o portador, o correio, o provedor, o instrumento, a mão. Dez mil homens estão na sua carne: como no centro de um olho atônito. Dez mil homens estão na sua carne: como numa vereda pouco transitada ao longo de dez anos. Dez mil homens, ataviados com as suas próprias fábulas. No seu corpo, há corpos. Cecília, corpo e – ao mesmo tempo - mundo, olha-me na moldura da porta, com a alegria que nasce nos seus olhos e em não sei que ponto do seu rosto, talvez em todas as linhas do seu rosto, um rosto novo, surpreso, ávido e feliz, sem o mínimo traço de maldade, sim, sem ódio, sim, tocado de audácia, de decisão, de força, um rosto de quem não tem medo de leões. Na sua carne estável e instável, real e mágica, na sua carne transparente e muitas vezes visível (na carne de Cecília a percepção se repete, cresce em reflexos, respostas e explosões), na sua carne, simulacro da memória, a presença dos seres que haverei de amar, amando-a. Hermenilda e Hermelinda baixam a cabeça.
Tudo percebo - a encomendação do corpo, o trabalho dos coveiros, o pó nas lápides, as lamúrias discretas das mulheres - e alheio a tudo, dentro de uma claridade que me ilumina por dentro e assemelha-se a um globo de espelhos em pedaços, com milhares de réstias que se cruzam, contemplo Cecília ao sol do meio-dia. Com os olhos (neles zumbem negros e rápidos leões), parece dizer-me: "Tenho a minha vida nas mãos, Abel. Recebe-a. Mas ouve: o amor, artefato de difícil manejo, é cheio de botões secretos e de facas que à mínima imperícia ou distração saltam voando e lanham a carne". Engano-me, eu, se nessa companheira reconheço a minha substância? Ela emerge de mim e da minha vigília tão semelhante a um sono prolongado - ela e os seus entes, uns nus, outros vestidos, uns sem armas, outros armados. Contemplo no seu corpo, assim parece-me agora, a minha e a sua memória, simultaneamente. As presenças humanas nessas memórias. Como se eu pudesse ver, ouvir, tocar as visões nem sempre nítidas, mas cheias de verdade e nunca fixadas em uma única idade de suas vidas, as visões ou espectros que habitam a memória e têm, junto com os brinquedos outrora possuídos e os lugares onde se viveu, o duvidoso nome de recordações. "Cecília, o equilíbrio é pouco seguro e ilusório, bem sei, quando o homem nele está incluído. Mesmo no Éden, esse estado perdura muito menos do que se pode esperar. Quantos passos daremos juntos?" Este minuto: espinhal desmesurado, esférico, a arder em torno de mim, como num fogo de diamantes.