UMA REDE NO AR - Os fios invisíveis da opressão em Avalovara, de Osman Lins

Leitura por Temas: O ROMANCE Avalovara é estruturado em oito temas, indicados pelas letras R, S, A, O, T, P, E, N, cuja origem é o palíndromo SATOR AREPO TENET OPERA ROTAS. Cada uma das letras é acompanhada de um título. A disposição dos oito títulos obedece à ordem da inscrição das letras no quadrado, conforme a incidência da espiral que lhe é superposta, gerando uma estrutura não seqüencial.

No agrupamento por temas, desconstruímos o entrelaçamento dos temas e os dispomos em ordem seqüencial, tema por tema, formando oito unidades, cada uma com seu desenvolvimento contínuo. Isso possibilita um tipo de leitura seletiva, já previsto pelo próprio autor.

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Você está em Leitura por temas » Tema E - Ö e Abel: ante o Paraíso [E17]

Estende-se na paisagem a Cidade, dominada por um alvo templo arredondado e cingindo-a uma tríplice muralha com dispositivos de defesa - torreões e ameias. Quando se for, não serei eu um velho, muitas vezes tendo as foices dos cassacos cortado e replantado este canavial? As elevações que a flanqueiam (numa das quais reconheço um cemitério cercado de ciprestes hirtos) estavam aqui ou não antes da sua vinda? Corresponde ao meu o seu norte verdadeiro? Arrancada do mundo, tem algo de uma ilha simulada, sem águas em redor, território cercado de desmoronamentos, os limites anulados por fantásticas máquinas de terraplenagem. Amplo é o gesto do colosso que indica o horizonte a um menino e transparece no seu rosto tão evidente soberba que nele creio ver o reflexo do mar e de muitos barcos com cargas de valor, mas, na verdade nada me garante que a Cidade seja portuária - e, portanto, não saberei se as águas que a dividem e nas quais se reflete o mesmo Sol que me queima são um braço do mar ou algum rio imóvel, vindo também pelos ares com o seu leito ilusório. Outra incógnita, cheia de irradiações cerca o evento, a Cidade vem a mim e mostra-se, com isto a caçada termina mas outra se inicia, pois a Cidade aparece-me inominada (o caçador abate um animal Sem nome), tenho então de buscar o nome da Cidade ou seu equivalente, uma espécie de metáfora, que, concisa, expresse um ser real e seu evoluir e as vias que nele se cruzem, sendo capaz de permanecer quando tal ser e seus caminhos não existam. Esta escuridão no que se refere ao contorno da Cidade e ao seu nome se opõe ao que sei (até que ponto e por intermédio de que indicações?) a respeito do que jaz sob os seus discutíveis alicerces. Sob a Cidade há outras, a Cidade existe sobre os ossos de doze outras cidades varridas pelo tempo ou por outros flagelos, sei que estas cidades suportam a sua altivez e que a água das cisternas, na Cidade, tem um sabor específico e mesmo inquietante, um sabor de admonição e ameaça. O nome ou metáfora de nome, como a Cidade, deve repousar sob doze cidades soterradas. Cruzamentos e trocas minha língua em meu ouvido por trás do pássaro na árvore um seio e um braço levantado grita a sua boca no meu fêmur e o coração que bate na garganta (minha? sua?) pertence a algum bicho. As mãos descolando os nossos ventres avançando em direção ao rumor de laranjas expremidas as duas mãos fechadas sobre o falo - Abel, eu te - amado - a rijeza do teu - este prazer - as pancadas do sangue - eu e - oh! pródigo eixo inflamado - deixa que - sim, eu te agradeço por - como é possível - tu não - o peito - meu amor - nada entre mim e as - entre mim e. Olavo Hayano, o Portador, olha através do pára-brisa cai a chuva um relâmpago olha o relógio de pulso quatro e cinqüenta e cinco vultos borrados nas calçadas os veículos molhados o colar as argolas no tapete os brincos os anéis fios e postes contra o céu cor de couro mal curtido andaimes negros e desertos janelas iluminadas antenas de TV e pára-raios reflexos vermelhos dos faroletes na enxurrada pedras de calçamento arrancadas pela água fechados os vidros do carro liga a ignição parte abre caminho entre os ônibus os automóveis que avançam lentos sob o temporal. Imóveis eu e ela imóveis súbito silêncio suas coxas deslizam em meus quadris e os pés devagar pousam no chão. Crivada de torres e sendo ela própria o capitel – ou mesmo o friso e arquitrave - de uma vasta coluna soterrada cujo pedestal e fuste as doze outras cidades constituem, a Cidade, com uma topografia tão movimentada como a paisagem do Nordeste sobre que, efêmera, desce e pousa, com suaves depressões entre cômoros arredondados, ostenta o seu fastigio em tudo: nas vinte e nove portas das muralhas e na pompa das demais construções. Mesmo os fossos entre as três muralhas, faixas sombreadas onde limoeiros, plátanos e laranjeiras floridas se alternam, testemunham fartura e gosto de viver. Certos conjuntos - o alvo templo de mármore, o Hipódromo, com esculturas de carros e cavalos, o Arsenal e um palácio quadrado, mais amplo do que todos, no centro de uma esplanada verde - quase obscurecem os outros domos e torres, os reservatórios limpos e as ruas calçadas de pedras. Neles alcança o auge a suntuosidade que se manifesta no material dos obeliscos, nos motivos vegetais e zoomórficos dos pórticos e frontões lavrados, nos tetos glaucos de faiança e onde o Sol se reflete. Golpes de vento sucessivos, rápidos murros, agitam os lustres, as dálias, os indecisos girassóis que se abrem no ar e o ramos do tapete fremem sob os nossos corpos placidamente ligados. O temporal, rijo, simula o anoitecer sombras compactas sob os móveis, a algodoada penumbra e os espectadores vindos dos retratos. Relâmpagos constantes, cerúlea, nervosa e como laminada a sua luz, rasgam o espaço antes que silenciem os trovões, ameaçam as junturas entre as coisas, acendem vidros pingentes jarros de prata adereços no chão aros verdes do vestido, trespassam os rostos de sépia esparsos na sala, embebem os girassóis. Tudo, passado o relâmpago, é cinza e fogo extinto, tudo que não seu corpo: nele - um dom, um estado, um merecimento - perdura este brilho precioso e réstias latejam no espessor da carne. A cabeleira derramada em leque, a língua sem pouso na boca seca e o traçado da face imerso entre a paz absoluta, o êxtase, o enigma solvido e o júbilo sem medo, segue com as pontas dos dedos o meu rosto, colhe ponto por ponto o meu rosto, incorpora-o a não sei que desvão do seu conhecimento e afaga-me, errática imperícia, o torso, o flanco, os pêlos riçados do púbis confundidos com os do seu, bojudo. O tronco firme sobre o lado esquerdo, finjo contornar com a mão direita (ousaria tocar?) a face radiosa e como interdita, fora de meu alcance, sagrada. Plantado no seu sexo, sinto, sem mover-me, cada dobra das paredes e sua temperatura, a das tripas de um boi ainda vivo, ela não se move e olha-me de dentro, íris raiadas de púrpura, nenhum de nós se move, ela ou eu, move-se porém essa garganta e corte, comprime o membro sensível - e outro corte menor, garganta mais estreita e mais febril, tenta engolir a glande. As engrenagens de som armam-se nas trevas móveis do relógio: faltam quatro minutos para as cinco, estão no ar os dados. Sobre o esplendor e a harmonia da Cidade pesa uma nota sombria. Tem a Cidade, na sua deslumbrante riqueza, algo de um cadáver podre e perfumado. Além disto, a ausência de bichos - existentes apenas nos entalhes, mosaicos e esculturas - e também de movimento, mesmo as ramagens e as flores como que petrificadas, isto e a erosão em redor da Cidade, separando-a das estradas e tornando inviável a aproximação dos homens, com os seus detritos e tumultos, esse isolamento monstruoso que as três linhas de muralhas, cada uma com três metros de espessura, reforçam e expressam, confere ao radioso aglomerado de torres, balaústres, fachadas e pomares, uma espécie de mudez ou de insanidade. A Cidade: tartaruga sem cabeça. Vir e refluxo dos signos vir e refluxo das vozes mortal combate dos signos as garras as mutilações vejo-a e o ser carnal a que me uno faculta-me o acesso ao seu mistério e algo de difícil e precioso uma realidade segunda contígua à que entorpecidos - o hábito, o hábito - manipulamos eis então seu sentido e sua força ela guarda em si o que nomeia o mundo o surgir o evolver o acabar sua carne é também uma jazida aí jazem as palavras jazem e dilaceram-se raivosas brutas virulentas ímpeto de pedra atirada no olho (jazem? ou formam-se? ou abrigam-se?) aí são e por isto o corpo que conheço que em mais de um nível e plano conheço e que luxuriante copioso aprazível imita o aprazível copioso luxuriante mundo do jardim com ele quase se confunde (curva roliça do ombro com a marca dos meus dentes) por isto o corpo mas qual dos dois? e acaso não há outros? o corpo o seu é espelho do mundo foz das coisas arcano do nomeável por isto nele é possível contemplar com olho insubmisso o consumado o vigente o esperado o temido pêndulo relógio dois minutos e meio para as cinco suaves rostos de sépia chapéus asas de pássaro cabelos frisados girassóis plastrons bengalas espartilhos girassóis abertos eu te amo amo-te é a ti que eu amo tu a quem amo tu amada mordo meu queixo mordo cada vez mais próximo da boca dentes contra dentes surdo e rouco gemido o anel escondido e além do anel no segredo da carne finas patas da aranha tocam o falo seus tornozelos roçam meus jarretes suas unhas minhas nádegas arrasta-me fundos golpes compassados direção aranhas (cavidade do sovaco, nívea, sombra dos pêlos raspados) canta invisível nela em mim por trás dos girassóis ou escondido nas eternas ramagens do tapete um pássaro e lenta ela me invade e é em mim e mostram-se em nossos corpos fundidos vultos que reconheço e amo pulsam presenças perpassam vozes corre o agora entre margens e nós próprios lá estamos enlaçados nós enunciados ou passíveis de enunciação nós e o que provocamos nós e o que fabricamos nós e o que perguntamos nós e o que testemunhamos nós e o que ambos deglutimos o que ambos odiamos o que ambos escandimos o que ambos amamos sonhamos desejamos o que ambos.

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