UMA REDE NO AR - Os fios invisíveis da opressão em Avalovara, de Osman Lins
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Leitura por Temas: O ROMANCE Avalovara é estruturado em oito
temas, indicados pelas letras
R, S, A, O, T, P, E, N, cuja origem é o palíndromo SATOR AREPO TENET OPERA
ROTAS. Cada uma das letras é acompanhada de um título. A disposição dos oito
títulos obedece à ordem da inscrição das letras no quadrado, conforme a incidência
da espiral que lhe é superposta, gerando uma estrutura não seqüencial.
No agrupamento por temas, desconstruímos o entrelaçamento dos temas e os dispomos
em ordem seqüencial, tema por tema, formando oito unidades, cada uma com seu
desenvolvimento contínuo. Isso possibilita um tipo de leitura seletiva, já previsto
pelo próprio autor.
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Você está em Leitura por temas » Tema E - Ö e Abel: ante o Paraíso [E6]
O relógio - desligada a serra mecânica - soa a nosso lado e nós nos desprendemos: ouço claramente o carrilhão, descontínuo. (Meio oculto na massa um tanto revolta dos cabelos, o outro rosto, mudo e sufocado, espreita-me, tenso de significados). Ela pergunta, aludindo a conversações que em outros lugares e momentos, nestes poucos dias, revelam um ao outro - e também a nós mesmos - um pouco do que somos, se as pancadas do relógio, na sua incongruência real ou aparente, me dizem alguma coisa. Fala com naturalidade, as mãos amplas cruzadas à altura dos joelhos agora desnudos, mas o tom e as inflexões da voz não correspondem à simples pergunta que me faz: as palavras, veladas e um tanto dissonantes; como se escapassem - e escapam - ao seu domínio, enraízam-se em nosso abraço interrompido.
- São estranhas, sim.
Também a minha voz não me obedece e eu não a reconheço enquanto admito que o magnífico relógio soa de modo bem diverso do que estou habituado a ouvir. Sempre, acrescenta , dá horas de um modo incongruente e não se tem notícia de que alguém ouvisse toda a seqüência de notas musicais, dispersas - diz-se - nos seus engenhos de som.
Afasta o rosto como quem procura esconder um pensamento, desce do sofá e atravessa a sala, descalça. Seus calcanhares, róseos, evitando assustar os pássaros tecidos ao pé das árvores e nos ramos cobertos de flores, quase não pousam no tapete que demarca a sala-de-estar. (Outro tapete, ainda maior e com desenhos de outra espécie, sugere, pela disposição, a sala-de-refeições). Meio voltada e sorrindo, a face esquerda iluminada pelo clarão da janela, olha-me por sobre o ombro, o pé esquerdo no ar, o torso maciço e impetuoso não obstante certo ar de lassidão - e sua exuberância detona, impõe-se. Os móveis, todos pesados, escuros e um pouco empoeirados, pertencem a estilos diferentes; fabricados por artífices de várias épocas e com diversa maestria, representam aquisições de anos, todas valiosas. O mobiliário de um velho casal com margem financeira, afeiçoado às coisas que possui e nem por isto menos inclinado a reforçar, com novas compras periódicas, a consciência da própria prosperidade. Porcelanas e objetos de prata, mais brilhantes do lado onde a janela aberta franqueia a luz das quatro horas, enfeitam alguns dos móveis. Fotografias de outros tempos, uma anciã de chapéu, crianças, um grupo familiar, algumas esvanecidas como a lembrança que acaso ainda subsista dessas personagens, animam, em delgadas molduras negras ou douradas, as paredes cor de limão - e não, decerto, porque representem pessoas muito amadas e ainda lembradas, mas porque conferem uma espécie de esplendor ao passado dos Barros Hayano, seus donos, duvidosos - quem sabe? - de existência real. Uma grinalda pintada a óleo sobre moldes, encima as fotografias, ligando de ângulo a ângulo as portas e janelas. Todos os ornatos, entretanto (ressoam ainda as pancadas do relógio), parecem descorados ante a figura erguida de , a ostentação evidente da sala empalidece e reduzem-se a bem pouco mesmo as suas dimensões. Ela desarticula os limites físicos da peça, torna os móveis ocos, estiola as rosas dos festões, oxida as pratas, desgasta as porcelanas, apaga o que resta das imagens nas molduras. Só o tapete com ramagens ganha força e cor: colhe-as dos seus pés descalços.
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