UMA REDE NO AR - Os fios invisíveis da opressão em Avalovara, de Osman Lins

Leitura por Temas: O ROMANCE Avalovara é estruturado em oito temas, indicados pelas letras R, S, A, O, T, P, E, N, cuja origem é o palíndromo SATOR AREPO TENET OPERA ROTAS. Cada uma das letras é acompanhada de um título. A disposição dos oito títulos obedece à ordem da inscrição das letras no quadrado, conforme a incidência da espiral que lhe é superposta, gerando uma estrutura não seqüencial.

No agrupamento por temas, desconstruímos o entrelaçamento dos temas e os dispomos em ordem seqüencial, tema por tema, formando oito unidades, cada uma com seu desenvolvimento contínuo. Isso possibilita um tipo de leitura seletiva, já previsto pelo próprio autor.

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Você está em Leitura por temas » Tema E - Ö e Abel: ante o Paraíso [E7]

Soam guizos em um ponto qualquer do edifício ou no long playing posto por . Que significa essa música, ardorosa desde a abertura e destoando, com seu coro violento, seus timbales rebeldes, desta sala formada para exprimir aceitação e continuidade? Devo entender que tão ríspida cantata, moldada no que há de mais elementar no homem e governada, entretanto, por uma inteligência lúcida e sensível, constitui uma espécie de norma - ou de aspiração - para o rito carnal que iniciamos? Toda a noite da véspera, cruzando despertar e adormecer, mãos desconhecidas mantêm contra a parede do meu quarto um lençol desdobrado. Sei que se trata de um lençol de bramante, tornado flexível pelo uso mas ainda um tanto áspero, um lençol resistente, destinado a seguir extensas fases de uma vida, talvez de mais de uma - e por isto sem marca bordada ou monograma -, terso lençol lavado com sabão às margens de rio, azulado em branda solução de anil, seco sobre lajedos, aspergido com água de arroz e engomado por mão de negra, com ferro aquecido a carvão. Tudo isto eu sei e não sei quem o sustenta à minha frente, cobrindo parte da parede. cruza outra vez a sala, os braços erguidos para soltar os cabelos, retorna a mim, lenta, os punhos apertados das mangas comprimindo a carne acima dos pulsos, alteiam-se os peitos e a blusa meio aberta mostra o profundo sulco entre eles, vou ao seu encontro e ficamos de pé sobre o tapete, cara a cara, ela joga a cabeça para trás e os cabelos jorram, aço e mel, sobre as espáduas sólidas. O rosto, entre eles, como que se recolhe para a sombra e, envelhece, a linha do nariz mais nítida - uma aresta - e rugas entre os olhos. Leio em sua testa uma palavra, como se eu a houvesse escrito, e não percebo o que significa: a palavra, em língua estranha ou inexistente, desaparece antes que eu a guarde. Enfio as mãos nos seus cabelos (procuro a palavra não grafada?), ela abraça-me, nossos rostos unidos e rumor de vozes: apressadas, falam em segredo. As transições sutis. Sem que se saiba como, um salto - e vos surpreendeis em outro grau ou zona de percepção. Tenho-a nos braços e a tarde é de novembro? Eis, porém, que esta não é mais e simplesmente a tarde onde um encontro ocorre: ultrapassa, nosso encontro, a condição de episódio aprazível e arma-se em fecho ou ápice de uma estrutura que o transcende. Não está em jogo o seu êxito, mas a sagração de tudo o que, em nossas existências, dizemos e fazemos. Onde quer que andássemos, fossem quais fossem enganos e acertos nossos, agora, estamos um em frente ao outro, sós - e de nós depende tudo. Pouco importa, além disto, que ingressemos, os amantes, em algum gênero de futuro. Devemos completar, mediante rítmica e feliz ordenação, o complexo arcabouço a nós confiado. Este é um confronto sem depois - ou no qual o depois já pertenceria a outra órbita ou ciclo. Pesa-me, nítida, enquanto flexiono os joelhos num gesto ritual ou alusivo, a condição de oficiante. Ela comprime sobre a parte inferior do ventre a minha fronte (outra vez as vozes segredadas), seu corpo cede, os joelhos claros sobre flores, as mãos cheias de anéis com as palmas generosas voltadas para cima. Tomo-as e contemplo-a. Coexistem dois corpos no corpo diante de mim e de nenhum pode-se dizer que seja o outro. Nada me faz supor antagonismo entre ambos e os traços dos rostos coincidem. Um ser e dois. Só um deles tangível: um, prisioneiro, olha-me súplice do silêncio que o isola: as suas mãos desguarnecidas de anéis estão nas mãos que seguro. Reflexos, vermelhos?, roxos?, pulsam no colo de , vindos de algum ponto da sala ou nascidos na carne. Abraçamo-nos com um grito surdo e tombamos no tapete. Vejo, na queda, um par de olhos fitando-nos entre os ramos. A Cidade aproxima-se do vale ensolarado como uma nuvem de aves migradoras, a Cidade e seu rio, extraviada, tanto a procuro e agora surge na luz do meio-dia, pousa na plantação, sem nome e um pouco gasta no seu esplendor.

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