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Você está em Leitura por temas » Tema E - Ö e Abel: ante o Paraíso [E10]
Minha fome e sede, de modo algum saciadas, sugam e mordem, presa a mão esquerda entre as suas coxas, sugam os solenes frutos gêmeos, cuja consistência entre aérea, líquida e firme, lembra o espaço contido no tapete, celeste, aquático e terrestre simultaneamente. (A árvore não nomeada que me cobre e da qual, frutais, pendem os seios sobre que me inclino, abre-se em flores tão vivas quanto às do Paraíso.) Retiro a mão de entre as coxas cerradas e que se afastam de leve, descubro mais o seu ombro, afago o peito e de súbito percebo uma cicatriz sob a pele. Ela estremece e com um gesto fora do seu ritmo, prende-me ágil o pulso. Haverei tocado uma ferida viva. A mão larga, um laço em torno do meu pulso, um laço rígido, seu corpo rígido. Os cabelos espalhados sobre os desenhos de lã. Vêm à tona os seus olhos secretos. Sobrenadam ainda, quando o ser a que pertencem incha, como um prisioneiro amarrado e amordaçado. As narinas palpitam e o seu ritmo é o do sangue na aorta. Ela orienta hesitante (que gesto e noite aqui ecoam?) os meus dedos para a marca ferida. Os olhos tornam ao fundo de onde emergem.
Pouco sofre no lugar do golpe o assetinado da pele: tecido serzido. A verdadeira cicatriz, rastro de aço ou de chumbo, esconde-se como o estrago de um verme sob a casca.
- Que é isto?
Na pressa com que me responde há um certo desafio:
- Furo de bala. Um tiro.
A voz, desgovernada, soa com estridência, um grito insultuoso. Sinto a dilaceração e talvez a mágoa da carne, as fibras estouradas e saradas em nódulos, um vácuo. Deixo cair o rosto sobre a marca.
- Casual?
Ante a sua resposta negativa, quero saber quem dispara contra ela.
- Eu mesma. Eu mesma.
Ficamos lado a lado, apenas de mãos dadas, em silêncio, fixando o estuque, as respirações agitadas. Posso ouvir, através das vozes da cantata e da grande bateria associada às vozes, a marcha do relógio, a serra elétrica e murros numa porta, descontínuos.
Sua pele, sensível embora ao calor, tende a conservar a brandura, sendo esbatidas e quase inexistentes as demarcações de matizes do seu corpo, mesmo nos meses propícios a estações marítimas, quando (nas ausências freqüentes do marido, ou, confessa, em sua companhia) busca o litoral e aí se expõe ao sol praiano - nunca, é certo, nas horas mais calmosas, preferido o entardecer ou a primeira parte da manhã. Nádegas e seios são talvez mais claros que braços e cintura, mas a diferença - decorrendo, em parte, do modo como as superfícies bojudas e não apenas curvas refletem a luz - é a que existe, nas paredes das salas com pintura clara, entre um ponto mais próximo e outro mais distante da janela, aberta para um dia nublado. Gradação idêntica observo entre as coxas e as pernas, entre os braços e os ombros. A cor da região axilar e na qual, através da suave almofada de gordura, apenas adivinho vagos desenhos de veias, é igual à dos jarretes. A cabeleira, com os seus reflexos entre argênteos e dourados, solta sobre as espáduas, disfarça ainda mais tão leves diferenças e, desde os pés, toda a epiderme desse corpo transbordante de formas parece de um só tom. Sobressaem-se na branda e uniforme alvura, que deleita igualmente as mãos e a vista, os pêssegos dos seios, o umbigo e o tufo do púbis, crespo, negro, frondoso.
Seu corpo, refratário às queimaduras de sol, é, em compensação, suscetível às gradações da luz, fenômeno mais claramente observável em ambientes fechados e em certas horas do dia. Leves ou espessas sejam as nuvens entre o Sol e a Terra, a cortina da sala ondule, passem ante a janela alguns pombos, ou, simplesmente, mude a sua posição ou a minha - e a pele amadurece, ou freme, ou pulsa, ou simula uma pátina.
A fartura de carnes contribui para tantas e tão surpreendentes mutações. Quando se desloca, os calcanhares suspensos, empenhando em cada passo toda a ciência que possui do próprio corpo e dos seus movimentos, as banhas luxuosas - detestáveis em outras pela ausência de lucidez e que, no seu caso, fazem evocar as estivais figuras femininas de Tintoretto ou de Tiziano Vecellio, mulheres nas quais o esplendor das formas é também um modo de exprimir a opulência e a fartura de Veneza em sua fase áurea – ondulam ao longo das coxas e em torno dos quadris com uma espécie de líquida fluência. Tenho presentes, vendo-a mover-se, caudas numerosas de peixes e superfícies de açudes.
Concorrem ainda para as irisações de sua alvura os pêlos cambiantes. Quando ergue os cabelos, vemos como desce da nuca e acompanha a coluna vertebral uma penugem: torna-se mais palpável à altura do sacro e então se abre em tridente, um dos quais se perde na junção das nádegas e os outros sombreiam, leves e em volutas, a zona superior dessas undosas saliências, cercando as covas que aí surgem sempre que firma no solo as pontas dos pés. Tão lisa, a face interna dos braços, quanto as coxas e as pernas depiladas com cuidado, enquanto (estranho e evocador vestígio de virilidade) uma camada de pêlos mais ou menos densa e que ela talvez descore com loções, corre entre cotovelos e punhos. Um traço vertical meio apagado desce do umbigo e emaranha-se no triângulo, nos seus frisados e anéis.