UMA REDE NO AR - Os fios invisíveis da opressão em Avalovara, de Osman Lins

Leitura por Temas: O ROMANCE Avalovara é estruturado em oito temas, indicados pelas letras R, S, A, O, T, P, E, N, cuja origem é o palíndromo SATOR AREPO TENET OPERA ROTAS. Cada uma das letras é acompanhada de um título. A disposição dos oito títulos obedece à ordem da inscrição das letras no quadrado, conforme a incidência da espiral que lhe é superposta, gerando uma estrutura não seqüencial.

No agrupamento por temas, desconstruímos o entrelaçamento dos temas e os dispomos em ordem seqüencial, tema por tema, formando oito unidades, cada uma com seu desenvolvimento contínuo. Isso possibilita um tipo de leitura seletiva, já previsto pelo próprio autor.

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Você está em Leitura por temas » Tema E - Ö e Abel: ante o Paraíso [E8]

Beijo com brandura as pouco numerosas sardas dos seus ombros e espalmo os peitos que, deitada de costas, pendem, os bicos semelhantes a botões de flor, de um lado e outro do torso, volumosos. Anunciam-se, nos duros e pontudos bicos, rosas sem caules? Todo o corpo de , já inteiramente nu sob o vestido e ainda guarnecido com os adereços que traz para o encontro, ressalta do tapete. Volumes ondulantes e compactos. Solto o laço da blusa e desabotoados os punhos, caem as mangas frouxas quando ela estende os braços e quase nada esconde o busto. Peças dos nossos vestuários, arrancadas com crescente impudor e uma violência que parece imitar as vozes da cantata, jazem em vários pontos, sobre móveis ou no piso, algumas nos limites da sala. Distamos pouco da absoluta nudez e, não sei por que, a solidão em que estamos parece esférica, embrião no seu óvulo. Estivéramos, ela e eu, gerando algum ser afável e gracioso, o júbilo dos homens, a idade da concórdia, a universal sabedoria! Consciente do corpo, ela, descalça, não se permite assentar as plantas dos pés quando anda. Desloca-se, os calcanhares suspensos, como se pisasse em ladrilhos muito frios ou evitasse ser ouvida, ondulam os flancos nédios graças a esse artifício e as mãos erguidas (um pouco) integram o alado encanto da marcha. Imóvel, firma-se em um dos pés e alça (um pouco) o outro, avançando, mediante flexão calculada com astúcia, o joelho bem modelado, com o que inclina o tronco e finge uma postura desatenta. Não negligencia, então, os ombros, lançados para trás - e assim mantém os seios na altura que deseja, as veludosas aréolas grandes como pêssegos e nos mesmos tons de ouro. Esse jogo de espáduas, dissimulado e preciso, reflete-se nas costas, cavando a curva acima das nádegas trêmulas e ressaltando, pelo contraste, o seu modelado. Com isto, a linha do ventre, brando e adiposo, desenha-se tensa: lembra um arco entesando para o tiro. Pulsam, no pequeno côncavo do umbigo, origem de uma leve penugem descendente, reflexos azuis. (Os coros arcaicos e os versos latinos do long playing, o compasso do relógio, nossas palavras gastas e mesmo assim verdadeiras, beijos mudos, gritos contidos, tilintar das pulseiras nos seus braços.) Com a mão esquerda, devagar, exploro as gradações de resistência e calor da sua pele, quente, assetinada e úmida entre as coxas, áspera e com algo de animal nas axilas raspadas, cremosa nos jarretes, fresca e seca nos flancos, viva nos mamilos, rija nos joelhos. Doçura e tepidez do ventre! Cálida, seca, tensa, flácida, úmida, imberbe, macia, túmida, gélida, em fogo, fresca, tépida, é o mesmo tecido atento e inflamado que responde aos meus gestos errantes. Tocando-a, os dedos ardem e onde quer que pousem há um zumbido, um frêmito. Habitam-na enxames de abelhas? Besouros? Imóvel e sem desejo de mover-me, mãos sobre o estômago, pernas estendidas (soam, longínquos, motores de ônibus, vozes, passos nas calçadas), sonho jazer no preciso lugar em que, dormindo, sonho. Interrompe a barra escura da parede, à minha frente, um retângulo claro, nas dimensões de um lençol e talvez branco. Aguardo que algo suceda e tudo o que sucede é a dissipação da dúvida a respeito da cor e da natureza do retângulo: há um lençol alvo, desdobrado, estendido na parede e eu posso distinguir, inclusive, as leves marcas das dobras. Quem o sustenta? Cerra os olhos e verga rígida a cabeça quando sigo com a língua o desenho entre a mandíbula e os botões dos seios. Mordo os seios, zona de textura indefinível - entre sólido, líquido e fumaça -, sugo as aréolas, ela ergue uma perna e joga-a sobre as minhas, soam guizos em torno do tapete, vara a janela um vento súbito e morno, vibram pingentes dos lustres e sobre nós range uma fronde, o vento agita-a, e eu tenho nas mãos, na boca, os grandes frutos da fronde, seus frutos gêmeos, redondos, únicos, maduros, impossível colher esses pomos encantados e cuja pele não os fecha ao mundo, antes encerra na sua polpa o mundo, e, no mundo, outra árvore com novos frutos gêmeos, fruíveis mas inseparáveis da árvore e nos quais o mundo mais uma vez -, e sempre - se repete. Ouço passos, pés descalços sobre folhas?, volto-me apreensivo. Visão surpreendente: no tapete, um vulto, mulher nua ou homem, como se nos espreitasse e fugisse, esgueira-se entre as ramagens umbrosas.

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