UMA REDE NO AR - Os fios invisíveis da opressão em Avalovara, de Osman Lins

Leitura por Temas: O ROMANCE Avalovara é estruturado em oito temas, indicados pelas letras R, S, A, O, T, P, E, N, cuja origem é o palíndromo SATOR AREPO TENET OPERA ROTAS. Cada uma das letras é acompanhada de um título. A disposição dos oito títulos obedece à ordem da inscrição das letras no quadrado, conforme a incidência da espiral que lhe é superposta, gerando uma estrutura não seqüencial.

No agrupamento por temas, desconstruímos o entrelaçamento dos temas e os dispomos em ordem seqüencial, tema por tema, formando oito unidades, cada uma com seu desenvolvimento contínuo. Isso possibilita um tipo de leitura seletiva, já previsto pelo próprio autor.

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Você está em Leitura por temas » Tema E - Ö e Abel: ante o Paraíso [E15]

Pousamos no tapete, eu por trás de mim e de costas para mim, o duplo ser, círculo fechado, boca e boca, bifronte, quatro pernas, quatro mãos diligentes e permutáveis. A claridade exterior amortece; toda a sala, com os seus objetos, resiste a esse declínio - prematuro e insólito -, cada superfície salienta-se e lateja, emitindo uma luz surda. As dálias flamejam nos seus amarelos - dálias ou girassóis? -, os rostos dos retratos nas paredes e as dobras das suas roupas avultam, palpáveis, tendem para um brilho de esmalte os damascos e veludos encardidos, o verniz, os vasos de prata, as maçanetas de vidro, as jóias espalhadas no chão, e, mais do que tudo, as cores meio apagadas do tapete, sua vegetação, as pernaltas, as lebres. O que na carne de clama por liberar-se - tensão de mola presa, ânsia dominada, explosão latente na neutra aparência da bomba - é a sua beleza em outro plano, mais depurado? Escapa dos meus braços e senta-se sobre as pernas, meio apoiada nos longos dedos ágeis sem anéis, de frente para mim, réplica, em outro plano, da luminosidade íntima que vibra em tudo. A fronte estreita não parece mais alta, o arco das sobrancelhas, sim, revela certo espanto e os olhos fitam-me com um brilho quase insuportável entre as pestanas grossas, mas o nariz é o mesmo, reto e pontudo, apenas mais distendido e com as asas afiando, nenhuma alteração no contorno dos lábios, abertos como se nunca lhes bastasse o ar, talvez esteja mais branca - ou mais luminosa? - e se acho mais compactas as deslumbrantes volutas dos cabelos, onde se fundem ouro e aço, deve ser porque estão soltas, desfeitas, em desordem, fios úmidos colados à depressão entre os seios. Alterações nas curvas da cintura e das ancas transbordantes, no volume dos peitos, no torneado dos braços, na grossura das coxas? Nenhuma. Contudo, grandiosa, o rosto insubmisso meio oculto na massa dos cabelos, as mãos tocando ligeiramente o tapete, ela é a mesma e outra, ela transformada e intensificada, havendo, entre a mulher que entra na sala ainda escura e esta, respirando rápido e brilhante de suor, a distância existente entre uma faca cega e a mesma faca afiada: sua beleza, agora, tem gume de navalha. O isolamento absoluto, em que me vejo, sob o Sol a pino, é o primeiro anúncio do prodígio. Voa bem alto um gavião, voa acima das nuvens, o braço esquerdo mantendo-me à distância, pássaros - alguns dos quais identifico - cantam escondidos, sob os pêlos úmidos, velado, seu sexo atento, um casal de canários - pousa no cajueiro e foge, discretos espasmos nos joelhos macios, zunem nos eixos, nota incerta e sem fim, as rodas, um carro de bois, a mão esquerda cede e a direita continua suspensa, protetora. Abelhas e moscas: seus zumbidos. Aspira fundo o ar e ergue os joelhos, os pés miúdos deslizam no tapete. Refletindo o vento que incita as nuvens altas, vem dos outeiros longínquos um vento de superfície, faz ondearem as folhas do canavial e alcança-me, cheirando a roupa lavada. Perfila-se entre os montes, negra, uma chaminé de engenho - e isto, com o som do carro, é tudo que existe de presença humana. Alteia-se ainda um grito, mas tanto pode vir de uma criança aterrada como de alguma ave para mim desconhecida. Agudo, esse grito, distante - "Raah!" - um só. Estende a mão e retira-a quando tento segurá-la, jogo de gatos, os dois peitos balançam, as pontas mais e mais enristadas, sempre que ágil puxa o braço, por fim acerto o bote ou deixa-se agarrar, puxo-a e vou sobre ela, grita o pássaro desconhecido, risos e ais estrangulados, seus pés miúdos no ar, crava-me as unhas nas costas, sua boceta ardorosa lambe-me a palma úmida, ela sustenta-me o pulso com as duas mãos, urra baixo e feio como se esmurrada no estômago, golpeia-se fundo entre as pernas com o meu punho, mordendo os lábios a ponto de sangrar (palavras no seu colo?, na garganta?), amolece e afasta-me, atira-me de lado e abandona-se, uma ruga entre as pálpedras cerradas, as órbitas roxas, os cabelos espalhados sobre a exuberante e pacífica representação do Éden, uma espécie de beleza solene e vagamente aterradora - seus gumes acerados -, placas lívidas no rosto, o peito imóvel, a mão direita sobre o sexo como se nele se aquecesse, bate o coração?, os lábios cor de cera, o braço esquerdo erguido, um pouco, conserva-me à distância. As imagens descoradas das fotografias crescem mais nessa espécie de vácuo e abandonam as molduras em direção à sala. Arranco-me, despertando, à febre e ao lençol do pesadelo: aqui estou, acordado, mas o coração bate ainda, os tecidos invisíveis continuam a romper-se (ouço-os, ouço-os) como se entes predadores partilhassem o quarto, dilaceram, sem pausa, sacos, fronhas, véus, rasgam o ar e a pouca luz vinda do corredor, tudo rasgam e não rasgam o lençol, funesto, contra a parede, imune às alternâncias de vigília e sono. O Portador sopesa na sua palma fugídia o pente da pistola, os sete furos laterais acusando a presença dos projéteis. Adormeço e acordo e adormeço e entre dois estados, como se ambos fossem um, debato-me, arrastando para o sonho elementos reais e dele trazendo, extraviada, com os seus variados odores campestres e domésticos, a imagem do lençol, neutra peça familiar, tornada indecifrável e ameaçadora pela insistência com que - visão ou sonho - impõe-se. As salas e os quartos, com a presença do Portador, ficam mais vazios, há uma torneira gotejando e este som compassado avulta. O pedaço de bramante, inalterado, trespassa vigília e sonho, até que alguém apaga a luz do corredor e ele, aos poucos, desgasta-se (envelhece?), dissipa-se - e também os rumores de panos que se rasgam -, desaparece aos poucos, tão sutilmente que não sei ao certo quando deixo de vê-los. O Portador, com um golpe seco e exercitado, enfia o pente na coronha áspera; guarda a arma na bainha de couro. Uma mosca, bêbada talvez do cheiro de cavalo, zumbe no quarto, pesada. Sopra o vento raso e as folhas do canavial também plantado em mim roçam umas nas outras, verdes, as bordas como fios de navalha. A solidão, nesta hora do dia e a céu aberto, ou, o que também é possível, o sortilégio da Cidade, vindo na dianteira da Cidade, pouco a pouco esbate e confunde os meus limites. Aspiro, pelo nariz e pela boca, as cigarras e os pássaros. Depois, apenas as cigarras: calam-se os pássaros ou vão-se. Meus olhos descem das órbitas e se unem na garganta. Abrem-se os cantos das cigarras, caudas de pavões, cinco ou seis, pousadas ao acaso, eu busco o ponto de intersecção entre os sons (aí está o equilíbrio e, com o equilíbrio, a visão conjunta, um pavão de pavões), busco esse ponto e quando encontro ou acredito encontrar o centro do polígono, cai o vento, as cigarras silenciam e neste centro (ou em mim, pois com o centro me confundo) muge um bezerro. Ergo-me sobre o cotovelo. A sombra da última nuvem, vagarosa, rasteja em direção ao vale, azula as folhas imóveis do canavial, sobe a encosta a meus pés, cobre-me, passa. O céu, no mormaço do meio-dia, pálido e, na minha vista, ainda mais afastado, parece a ponto de romper-se superfície tensa. Vejo, então, no ponto onde o Sol nasce, longe, uma breve mancha negra, móvel e coruscante, planando com destino certo. Ave de grande porte a mancha negra alada fulgente surgida no horizonte? Absurdo. Sequer esta luz feita de lentes polidas a aproximaria. Que corpo então este, brilhante e em silêncio, que voa? Ave alguma, tivesse o porte de um boi e a envergadura de um telhado, seria visível a tal distância. O Sol bate de chapa na paisagem: nem sombra do gavião. Novas manchas, várias, agora mais compactas, voam lestas e sendo muitas se impõem mesmo assim como um todo: vejo, nesses objetos distantes e que, conquanto céleres, oscilam, um ser único, ainda fragmentário, esquadra de outros mundos, formação bélica, peças de um arcabouço, letras de um nome. Isto. Contemplo, deslocando-me no rumo da vertical que a divide, o claro corpo e seu fausto. Ergue com preguiça os braços, deixa-os cair sobre a cabeça e abre os olhos pesados, olha sem direção, vaga, os joelhos erguidos movem-se de leve e um tanto sem governo, as carnes leitosas das coxas ondeando. Os flancos, pousados sobre o tapete, ampliam-se, tornam mais grada e convidativa essa arca.

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