Imprimir tudo Voltar
Você está em Leitura por temas » Tema E - Ö e Abel: ante o Paraíso [E14]
Afasta-se de mim, os pés quase de criança e parecendo insuficientes para o corpo, vasto, com algo de aquoso e ondeante, afasta-se tocando com as pontas dos pés os desenhos do tapete, a espádua lançada para trás e as longas mãos intranqüilas aos lados dos quadris, descubro, com o olhar aguçado, mais um encanto secreto, as covas do cotovelo, são seis ou sete passos, mas ela os executa com minúcia, há uma ondulação de bandeiras, algo de triunfal no modo como leva o corpo, cada passo equilibra-se no passo anterior e determina o próximo, e ela ainda meneia os braços nessa dança. Pára junto à vitrola, o calcanhar esquerdo soerguido, as nádegas tremendo a cada movimento do corpo, imensa alvura arredondada e agora luzindo de suor, absorvendo mais intensamente os reflexos difusos. Curvada sobre o disco, o sexo ressalta um pouco entre as coxas, roxo e úmido a ponto de espumar. Um vento quente invade a sala e as dálias estremecem na mesa, tilintam os pingentes dos lustres, o carneiro se move, vai e vem o grande pêndulo, o Portador entra em casa, silêncio, repõe no gancho o telefone desligado, percorre os cômodos, aberto o guarda-roupa da mulher, meias e vestidos jogados sobre a cama, vidros de perfume destampados, repõe as rolhas de vidro nos gargalos, vai ao escritório e puxa uma gaveta da sua secretária, enche o ar um odor forte de cavalo.
O processo dos eventos é longo e alguns sinais os prenunciam. Vêm os eventos como um monstro marinho que ascende dos abismos e antes que mostre a cabeça alteiam-se as águas, estranhas e escumosas, o monstro se debate e revolve-as. Conquanto não veja a Cidade, ingresso numa órbita pouco natural. Desviados por uma espécie de corrente que entre mim e eles, separadora, insinua-se, os poucos companheiros distanciam-se. Chamam-me ou jazem adormecidos? Não ouço as suas vozes e eu próprio deito-me. A sombra do cajueiro, quando passam as nuvens, acentua-se, adquire um ar de beira-rio.
As mãos para cima, sustento os peitos que pendem sobre mim e passo o rosto no púbis, de joelhos; ela, de pé ainda, afaga a minha cabeça e comprime-a a espaços, incontida, contra os pêlos fofos como uma cabeleira crespa e onde respiro uma tarde mais quente e ecoante de perfumes que esta de novembro, bosque úmido e escondido, com flores carnívoras abertas na sombra. (Este desejo que disparas em direção a ti e cujas molas apoiam-se em tantos pontos estranhos ao meu corpo -, assemelhando-se ao impulso que conduz, imperioso, os machos sobre as fêmeas e multiplica as vozes, algumas distinções o fazem incomum. Sim? Ou, ao contrário, devo situar aquelas distinções em ti, objeto e alvo do meu desejo, sendo este incomum na proporção em que tu mesma te sobressais?) Roço a testa nas gorduras do seu ventre, modelo as ancas poderosas como as de um cavalo mas com resistência de algodões -, junto as pontas dos dedos na coluna e desço-os devagar acompanhando com as unhas a linha das vértebras como se tencionasse abrir seu corpo, separar as duas metades, enfio os dedos na cálida junção das nádegas, ela afasta os joelhos e suas mãos prendem com violência os meus cabelos, mordo o centro do seu corpo. (Arremesso-me em direção ao seu ventre, sem recuo possível: cego animal fascinado, converto as minhas garras em dedos de lã. Conhecer-te na carne, porém, cada vez mais parece desdobrar-se em conseqüências que intensificam esta aventura.) Mordo e sugo o centro do seu corpo, ela repete o meu nome entre repreensiva e deslumbrada, a voz alteia-se e morre num sussuro, suas mãos não param, a cantata melodiosa e áspera, incôngruo vozerio no seu corpo, corre o carneiro, o guizo de metal, grita um pássaro na sala e debate-se, o estalo das asas, a ventania, eu te amo, o Portador sopesa na palma grossa algumas balas, o brilho amortecido da espoleta e do aço, azuis e baços.
Fito a impenetrável superfície do lençol como se encarasse um animal desconhecido e armado de garras - e procuro livrar-me, no sono, da persistente visão. Adormeço e reencontro, inalterado, esses dois metros de bramante costurados nas bordas e que transita, com tudo que me cerca e situa, do sonho para o estado de vigília. (Unindo-me a ti, que amo e desejo, uno-me também por fim a certa ambígua visão inalcançável, vacilante entre o vir e o partir; e recupero, pois ela subsiste em teu corpo, a frágil companheira companheiro, também posso dizer - que realça, entre velhos chapéus, luvas desbotadas e antigos colares arrancados do fundo de gavetas, a única estação encantada e realmente feliz de minha vida.) Reencontro o meu sonho híbrido, agora acrescido dos múltiplos rumores de panos dilacerados e de uma febre que me lavra. Iludo-me, procurando expulsar do corpo a febre por um esforço da vontade. A febre aumenta e eu sinto o coração estourar, bombeando o sangue em fogo. Grito, a febre castiga-me, os olhos fixos no lençol que parece adquirir então um significado, conquanto nada veja, sobre ele, das imagens ou letras que a superfície virgem e imóvel parece anunciar ou esperar. Sofro, solitário, sem ajuda possível - estou fechado à chave e não ouso mover-me - e só do meu corpo batido pela febre espero socorro. Ainda os rasgões rápidos e raivosos, lenços, cobertores, vestidos.
Ambos de pé e voltados na direção da mesa, nós, colado às costas de quem, passando por íntegra, se designa por fêmea, o peito de quem, sabendo ser incompleto, passa por macho, nós, bicéfalo, eretas as duas pernas direitas, um pouco flexionadas as esquerdas, de forma a deixar livres os culhões, que a mão de unhas polidas e sem anel algum, voltada para trás, apalpa (pertencem-lhe esses ovos de pássaro?) enquanto a outra afaga o próprio seio, ficando o outro seio entregue à mão mais grossa, a direita, que imita, no mamilo túrgido, os movimentos executados pela esquerda na cabeça pulsante e dilatada do membro, preso entre as virilhas molhadas e parecendo sair de dentro da vagina, nós, macho-fêmea, as cabeças lado a lado e voltadas na mesma direção, uma curvada para a esquerda à maneira de um cão que vai morder a cauda e na verdade dando a língua a morder, meus seios, meus culhões, meu duplo sexo. Que me falta a nós? (Mistura-se ainda ao desejo, manifesto no que agora prendes com doçura entre os dedos frios e ainda impacientes, a ambição de desvendar ou liberar essa mulher silenciosa à qual te assemelhas, cuja voz parece vibrar com um timbre rude em certas frases tuas e cujo olhar, mesmo quando cerras, lívida, as pálpebras, permanecem fixos em mim.)
Nossos pés ficam mais leves no chão, meu púbis mastigado pelas suas nádegas, cinjo-a, mordo a sua nuca, o seio esquerdo na minha mão direita e o outro seio alegrando a outra mão, pesado o ar e menos luminosa a tarde, ela abre as pernas e distende para trás os pés, entrança-os nos meus tornozelos, curva-se e eu me curvo sobre ela, agarra com dez dedos os escrotos e o bastão que sobressai à sua frente, apoiado ao longo da fenda escorregadia, ungido pelo mel que as entranhas em brasa segregam sobre ele e por vezes expulsam em jatos violentos, vogamos, os quatro pés no ar, ela se contorce e nossas bocas unem-se ávidas, pendem os seus cabelos e voam, vamos sem leis ao longo das paredes, passamos ante os rostos amarelos das fotografias, flutuamos sobre as dálias, roçamos um dos lustres, nosso reflexo impreciso ante o vidro do relógio, o ser alado e bicéfalo, quatro horas e trinta e três minutos, meus peitos de mulher e seu membro de homem, ocupamos uma esfera de caprichos e decifrações, rodeiam-nos as máquinas, as vozes e os miasmas da cidade, o Portador, pousamos sobre a lã ordenada do tapete.