UMA REDE NO AR - Os fios invisíveis da opressão em Avalovara, de Osman Lins

Leitura por Temas: O ROMANCE Avalovara é estruturado em oito temas, indicados pelas letras R, S, A, O, T, P, E, N, cuja origem é o palíndromo SATOR AREPO TENET OPERA ROTAS. Cada uma das letras é acompanhada de um título. A disposição dos oito títulos obedece à ordem da inscrição das letras no quadrado, conforme a incidência da espiral que lhe é superposta, gerando uma estrutura não seqüencial.

No agrupamento por temas, desconstruímos o entrelaçamento dos temas e os dispomos em ordem seqüencial, tema por tema, formando oito unidades, cada uma com seu desenvolvimento contínuo. Isso possibilita um tipo de leitura seletiva, já previsto pelo próprio autor.

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Você está em Leitura por temas » Tema E - Ö e Abel: ante o Paraíso [E11]

Nossas mãos, enlaçadas, não se pressionam entre si e apesar disto seria falso dizer que apenas se tocam: une-as uma corrente sem sinais exteriores. - Eu própria disparei. Faltava dizer isto. Não me despreze. Golpes de punho abalam não sei onde uma porta. A irada insistência com que batem significa alguém do mundo exterior ameaçando os que a chave protege. A porta é arrombada com um estrondo longínquo, nós estremecemos e cingimos com força a mão do outro. Ela pousa no meu peito a cabeça. Aperto-a ainda mais contra mim, afago os seus cabelos. - Abel... Não me faça perguntas. Não quero que faça. Odeio perguntas: já ouvi muitas. Ouço bater de asas e mergulhos sucessivos de pedras ou rãs. Sorrateiro e frio como répteis, perpassa entra nós um odor de folhas mortas e úmidas. As aves, nos ramos do tapete e sempre incólumes, rodeiam-nos, incientes da morte e de toda espécie de mal. Talvez levemos em nós o gérmen destinado a matá-las e a corromper o bosque onde cantam em silêncio. , com a marca da bala no seu corpo, será a um só tempo a mulher do jardim e a árvore mortal da sabedoria. Que segredos esconde o lençol e quem o mantém suspenso contra a parede? Adormecido e podendo vagar no estado não nomeado em que ingressa um homem enquanto dorme e não sonha; podendo sonhar com lugares e pessoas distantes ou mesmo inexistentes - podendo respirar, portanto, entre espantado e nostálgico, algum entardecer da infância ou rever os meus mortos - vejo-me, no sonho, deitado numa cama igual a esta em que durmo, luzes apagadas e fechadas as cortinas musgo, o que não impede na vigília e neste sonho sem disfarces - que a claridade da iluminação pública, reforçada pela infiltração, sob a alta porta envernizada, da lâmpada acesa a noite inteira no corredor do hotel, revele as formas dos móveis antiquados, o globo apagado no teto de madeira envernizada e, à minha frente, a parede vazia, clara na parte superior e pintada a óleo até à altura de um homem. A cor e os desenhos da pintura, volutas desenhadas com um pincel grosso e meio seco sobre a tinta castanha ainda fresca, não são muito nítidos: toda a parte inferior da parede, à escassa luz do sonho, parece-me compacta e trevosa. Acordado, não a veria mais clara e real do que vejo. Do breve e imprudente encontro no Parque Ibirapuera (as mãos largas sobre o volante ou atirando para trás os cabelos que o poente incendeia), trago o seu fular com desenhos de lagartas. O perfume de que está embebido e que torna a ausência menos drástica (ela está distante: não este lenço e este perfume, vestígios do curto passeio) também penetra o sonho. Que se oculta no exíguo espaço entre o lençol suspenso e a parede? Nada? Curvada sobre mim, assume certo ar celeste e chuvoso: cobre-me com doçura e eu me entrego a isto, enleado. O rosto concentrado é o de quem tenta desenredar barbantes, enquanto ela executa lentos meneios sinuosos, tocando-me com as mamas e os cabelos. Os cabelos pendem e sua fronte brilha tênue entre eles, mas a partir dos supercílios uma atmosfera noturna esbate os traços da face. Postos para fora, os ubres soltos balançam, cheios, rolam pelo meu torso. Tocam-me ainda as contas do colar e as pulseiras tilintam nos seus punhos. As vozes dos cantores alçam-se com ardor, um carneiro, rescendendo a jasmins, atravessa o tapete e cruza a sala, que dádiva oferecem os peitos?, sou um homem cheio de secura e minha piedade se existe é acre, ungüento cáustico, nadam estilhaços de ossos no meu sangue e em mim o ato criador se confunde com obstinação, transito afável e calado entre as pessoas, morto de cólera e amolando os dentes em segredo para morder, despedaçar e cuspir o que me cerca, como quem morde, despedaça e cospe o nó de couro ou de corda apertado nos pulsos. Mas, cobrindo-me como um dossel, o colo furado de bala - e a cicatriz, nessa postura incomum, os peitos farejando-me, mostra-se mais funda -, ela me renasce ou me transforma em outro ou faz com que eu retorne a alguma hora festiva. Risca meu torso e rosto com os pêssegos dos peitos, leva-me ambos à boca sucessivamente (parecem respirar) e algo da invulnerável harmonia do tapete faz-me em mim, solene, faz-se em mim. Não sou, porém, inocente e o desacordo participa da minha natureza: existo dentro e fora dos muros. Os guizos do carneiro ressoam em vários pontos. Anda na sala ou ingressa no tapete. Armistício algum, aqui, com as iniqüidades que o meu olho constantemente acusa. Insubmisso e colérico, sem que a cólera me envenene ou deprede. Sim, intactas a cólera e a insubmissão, embora avulte em mim um estado próximo à serenidade. O que se reduz não são as marcas em mim deixadas pelos bens que por obra dos homens me são arrancados ou que nem sequer logro alcançar - e sim as que devo a mãos como as da morte. Se, despojado, privo-me de tantos gestos francos, de tantas palavras de amor e de tantos impulsos ardorosos, tudo isto convertido, dentro de mim, em coisas sem serventia, vejo-me sob os seus ombros e: o que está calcinado, o emperrado, o silente, o seco, o sombrio, verdeja, move-se, responde, jorra, esplende, sem o frescor - é certo - das coisas novas e ainda não ofendidas, compensada porém esta carência por um traço de maturação ou mesmo de sabedoria, de modo que uma confissão de amor, arrebatada e ao mesmo tempo lúcida, será também marcada pelos meus enganos e desastres. Abraço-a, os seios pluviais achatam-se contra o meu peito, abraço-a, à luz da tarde, com ímpeto e franqueza, o carneiro pisa no tapete, o seu claro perfume de jasmins, exclamo convicto que a amo, amo, amo-a, eis que te amo, solto e desatado grito, minha amada, amo-a, falo com três bocas, três são as minhas vozes e se dirigem às mulheres a quem amo. Todas me ouvem: ela me ouve. Alguém me chama de longe, eu, talvez, dentre as ramagens do tapete. Contínuo e firme, roda ou rio aéreo, o vento alto tange em direção a mim, sobre o canavial imóvel, as enfunadas nuvens.

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