UMA REDE NO AR - Os fios invisíveis da opressão em Avalovara, de Osman Lins

Leitura por Temas: O ROMANCE Avalovara é estruturado em oito temas, indicados pelas letras R, S, A, O, T, P, E, N, cuja origem é o palíndromo SATOR AREPO TENET OPERA ROTAS. Cada uma das letras é acompanhada de um título. A disposição dos oito títulos obedece à ordem da inscrição das letras no quadrado, conforme a incidência da espiral que lhe é superposta, gerando uma estrutura não seqüencial.

No agrupamento por temas, desconstruímos o entrelaçamento dos temas e os dispomos em ordem seqüencial, tema por tema, formando oito unidades, cada uma com seu desenvolvimento contínuo. Isso possibilita um tipo de leitura seletiva, já previsto pelo próprio autor.

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Você está em Leitura por temas » Tema E - Ö e Abel: ante o Paraíso [E12]

Amada: quando incontáveis seres conhece e cruza o homem sem que seu próprio ser se amplie, avance e alcance, tu me conduzes (para onde, para onde?), e não casualmente rondamos nós os limites deste bosque no qual perpassam aparições. Afluentes e afluentes, muitos desde sempre e para todo o sempre insuspeitados, formam o nosso encontro. Desnudamo-nos, imersos em mútua ebriez lúcida. Ah, fosse o vestíbulo do nosso prazer, também, o da unificação e do conhecimento! Reinas através desta hora como um astro. Teus numerosos beijos roçam a pele dos meus ombros como se temesses magoá-los, intensificas a pressão dos lábios (desejas aspirar a minha substância, a ti incorporando-a?), a seguir beijas-me de leve e outra vez com força, mas, brandos ou incontinentes, cada um desses beijos vai fundo em minha carne e planta vozes em mim: eu mais e mais habitado. Volto-me e fico de bruços no tapete para que me cinjas com teus beijos incansáveis, tu me cinges, várias bocas me marcam - na espádua, à altura dos rins e ao longo das costelas - e tua mão afaga-me e também os teus cabelos, soltos. Clamam as vozes em mim, algumas desconexas e todas exaltadas, clamam e não silenciam - eu deitado de costas, eu com o peito no tapete, quente e agitada tua língua em meus ouvidos, eu debruçado sobre mim, tu e eu, com ânimo exuberante, rolando entre os quatro muros floridos do Jardim, tua mão cheia de anéis no meu ventre -, múltiplas clamam as vozes, através da minha boca ou autônomas, no corpo onde vais semeando-as. Clamam. Querida! Arca o homem que encontras, na sua maturidade, com o peso de algumas nódoas senis: tolhe-me, certos dias, um velho e seus gravames. Tu, certamente, me impões não sei que violentas leis e eu recupero, sob o teu influxo, uma plenitude que me ultrapassa e que o sexo alteado reflete. Chegarei, porém, a decifrar, eu, por que te amo? Transitas entre os viventes carregando o peso de uma formosura copiosa e cuja avaliação veio a tomar-se difícil. Contudo, que expressivo o teu corpo em sua vigilante desmesura! Não dilatam os homens, opondo, com tal artifício, à diminuição e ao olvido - estes roedores implacáveis o que decidem conservar como exemplo? És, de certo modo, a tua própria ampliação. Tentassem meu amor e meu desejo magnificar-te: inventariam uma mulher aquém de ti e que seria, se tanto, o teu reflexo esmaecido. Precisarei dizer, enquanto apertas voraz a minha língua entre os dentes, que me fere a beleza manifesta na carne? Afligem-me, pelo que abrigam de transitório, o esplendor do teu rosto, o do teu corpo. O efêmero, entretanto - ainda não é tempo de que eu saiba como - funde-se, em ti, à permanência: ungida de perenidade, outra presença me espreita no espaço do teu corpo. Também te amo por isto e ainda pelos vultos femininos que integram, vívidos, a tua substância, a ela acrescentando uma qualidade plural. Tu: estuário. Amando as convergências, o que de convergente há no teu ser havia de atrair-me. Isto, amor, é tudo? Não e não saberei, com clareza, porque te amo e não poderei alcançar todos os motivos e sentidos deste encontro, numerosos e talvez até contraditórios. A decifração, afinal, seria a prova de que tudo - nós e nossos passos e esta hora - dispensavam existir. O lugar que prefiro para desenvolver as minhas incompletas meditações juvenis é a cisterna, de onde ouço o trabalho ruidoso das ondas nas pedras dos Milagres e os rumores vindos do chalé, cantos, risos ansiosos, instrumentos de música. Aproxima-se a noite prematura de julho e o terral retardatário, que sopra forte e constante, joga folhas mortas na coberta de zinco. Resta do dia alguma luz, a areia na praia ainda brilha e sobre a extensão marítima paira uma reverbação prateada. Aqui, já não se enxerga o fundo da cisterna e a água levemente encrespada começa a exalar seu verde odor noturno, misto de azinhavre e iodo. O costume de lançar aos poucos peixes a rede e que tanto me ajuda, durante certa época, a indagar sobre o que busco, não mais é necessário: deitado no cimento, deixo-me vogar inutilmente ao encontro das revelações. Assim estou, quando, sem voltar-me, com olhos raros e como deslocados, soltos acima da minha cabeça, vejo um movimento no centro da cisterna. Antes que eu identifique no corpo que flutua, aí, à luz difusa, uma cidade miniatural e transparente, abate-se o mar contra as pedras duas ou três vezes. afasta-se de mim. Assentada sobre as pernas, os pés de tal modo dobrados que os calcanhares perdem a cor, leva as mãos à nuca e as largas mangas pendem frouxas, descobrindo os braços. (Vêm do tapete, das jóias ou do meu desejo os reflexos que neles surgem e apagam-se?) Olha-me de dentro, olhos de fome e de febre, fundos: animais de presa a ponto de saltarem - elásticos, alegres, na sombra - sobre a caça. Respira fundo e rápido, descomposta, os peitos livres acentuando a agitação com que sorve o ar pelas narinas e também pela boca. A testa inclinada, tira o colar e prende-o entre os dentes, os olhos quase ocultos por trás dos cabelos despenteados. Sempre com as pérolas na boca e sem afastar de mim o olhar, cuja flama não arrefece, desfaz-se um a um dos anéis. Apesar da cantata, do passar dos veículos e da serra mecânica novamente ativa, ouço-a arfar e tilintarem as pulseiras nos alvos braços carnosos. Livre dos anéis, junta-os ao colar e os depõe no chão, ao lado do tapete. As olheiras que só então descubro e que a cada instante parecem mais roxas ampliam as suas pupilas. - Abel, eu te amo. Estendo a mão e acaricio o seu joelho. Ela prende-a entre os dedos nus - pela primeira vez os vejo sem anéis -, ergue-a devagar e beija-a. Pousa-a depois sobre o tapete e, soerguendo-se um pouco (avulta dentre as coxas o negro e abundante tosão), despe o vestido, joga-o no meio da sala e atira os cabelos para trás com um movimento de cabeça. Sinto, como se abrisse ou se rompesse o frasco, o perfume lancinante que usa e vejo à plena luz do dia a magnitude do seu corpo, de si apenas ornado e dos reflexos que o embebem. Restam as argolas de prata nos pulsos, também delas se desfaz subitamente concentrada, solta-as ao acaso, as argolas giram em várias direções, antes que se imobilizem eu arranco as roupas que ainda me cobrem, ela se precipita sobre mim - o voar dos seus cabelos nesse gesto e tal é o ímpeto do nosso abraço que o meu peito se abate contra o seu e ambos lançamos, juntos, um grito sufocado. Bocas e gritos se confundem. Rumor de água corrente sob nós e um estrondo de trovão, surdo.

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