UMA REDE NO AR - Os fios invisíveis da opressão em Avalovara, de Osman Lins

Leitura por Temas: O ROMANCE Avalovara é estruturado em oito temas, indicados pelas letras R, S, A, O, T, P, E, N, cuja origem é o palíndromo SATOR AREPO TENET OPERA ROTAS. Cada uma das letras é acompanhada de um título. A disposição dos oito títulos obedece à ordem da inscrição das letras no quadrado, conforme a incidência da espiral que lhe é superposta, gerando uma estrutura não seqüencial.

No agrupamento por temas, desconstruímos o entrelaçamento dos temas e os dispomos em ordem seqüencial, tema por tema, formando oito unidades, cada uma com seu desenvolvimento contínuo. Isso possibilita um tipo de leitura seletiva, já previsto pelo próprio autor.

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Você está em Leitura por temas » Tema E - Ö e Abel: ante o Paraíso [E9]

Enquadra o tapete, prolongado, nas bordas menos largas, por duas franjas pálidas, fina moldura sangüínea, cercando duas seqüências florais, ambas com predomínio do azul, mas baseadas em distintos modelos. Segue-se uma barra bem mais larga, também florida e onde as flores, ligadas entre si por uma caligrafia de folhas, salientam-se, douradas e índigo, sobre fundo vermelho, evidentemente estilizadas e repetindo-se, rítmicas, com variações quase imperceptíveis. Repetem-se, então, as duas seqüências das bordas, agora na ordem inversa. Esta quíntupla demarcação isola no espaço o verdadeiro motivo da tapeçaria, o festivo retângulo onde avançamos talvez para o conhecimento. Nele viceja uma vegetação nascida de meditações felizes, estranhas à idéia de Mal - nem o mínimo vestígio de destruição, de violência, de morte - e sem que esta recusa (como saber, com segurança, se desconhecimento ou recusa?) redunde na invenção de um mundo sem força de verdade. Estamos abraçados sobre um quadro fantástico e engendrado na Beatitude, mas permanecem os liames que o associam ao mundo perecível e sem os quais corresponderiam apenas a frágeis idealizações esta vegetação imaginosa e a fauna que a povoa. Troncos retorcidos e curtos, obviamente sem raízes e apoiando-se em um dos lados do retângulo, procuram identificar esse lado com uma superfície sólida, convenção negada pela existência de outras árvores cujos troncos levitam, acrescentando ao espaço do jardim uma qualidade arbitrária e vagamente celeste. Abrem-se como sargaços os ramos desses troncos, pouco providos de folhas e animados, em compensação, por uma explosão de flores vermelhas e azuis, de forma variada e nítidas pétalas abertas. Os ramos não se curvam ao peso dessa floração opulenta. Lebres e aves que tanto podem ser garças ou íbis como pássaros estranhos para nós mas familiares ao tapeceiro, ou, também, pássaros extintos e sobrevivos apenas em algumas imaginações, aparecem em várias atitudes sobre o fundo entre laranja e tijolo, quase sempre ocupando - um tanto florais, também elas, na plumagem e na quietude - os belos ramos floridos. Por que, seja qual for seu nome e mesmo pousadas nas árvores, pertencerão, sem engano possível, a alguma espécie aquática, essas aves de pescoço elástico? Para tornar presentes, com tal artifício, os peixes ausentes. Assim, sem que se altere a unidade do quadro, o espaço, terreno e aéreo (levitação das árvores, existência de seres alados), completa-se: eis, invisível, um lago. Eu estaria errado se entendesse que apenas o lago participa (e os rios oriundos do lago), por uma espécie de reflexo, deste mundo que e eu rondamos. As representações são sempre enigmáticas, alusivas, fracionárias e quase nunca contempladas na sua totalidade. Como introduzir com ordem, num espaço forçosamente limitado, tudo que pretendemos? Estas árvores e flores que se alastram em toda a área do tapete não são de modo algum estas árvores, estas flores: resumem em si uma vegetação de inconcebível variedade. Peixes, animais do chão (não os animais aborrecidos) e toda uma população ornitológica transparecem nas pernaltas e nas lebres - e se figuram no tapete, precisamente, lebres e aves ribeirinhas, será, dentre várias outras intenções secretas e não alcançadas, devido ao seu exterior pacífico: denotam o reverso da violência. Mas, se no tapete eu visse o Todo, também veria além dos limites, e, então, nada mais veria. Tenho aqui o mundo, sim, porém ainda inviolado e por isso não existe, nas flores abertas, nas aves despreocupadas, nas lebres alheias a eventuais perseguidores, a mínima sombra de destruição ou de qualquer gênero de horror. Paira em tudo um ar de imunidade e mesmo o olhar distraído bem depressa adivinha, não sem nostalgia, que os seres aqui tecidos são imortais. O tapete é o Paraíso e, com os sons da cidade, em torno da muralha constituída pela quíntupla barra de motivos vegetais, ruge a morte. Ocorre que, nesta versão do Paraíso, as árvores, todas carregadas de flores, não frutificam: falta a portadora da maçã a ser colhida e que transmitirá, a quem a colha, conhecimento e castigos. Ausente, ainda, o casal humano. Contudo, um casal meio despido se ama na manhã eterna do tapete e na hora fugaz da tarde, o homem tendo nas mãos os seios da companheira e sorvendo-os em êxtase. Situa-se, o casal, aquém ou além dos limites floridos? Até que ponto completariam a representação e através de que fios a ela se unem? Pertencem à multidão dos seres expostos às vicissitudes terrenas ou habitam, felizes, o mesmo espaço inexpugnável onde os contemplam as aves imóveis? Podem adquirir, ingressando no recinto arborizado e protegido do mal, a perenidade que o inunda; e, também, invadindo-o com a sua substância perecível, tornar os muros inúteis. Mas antes preferiam não participar do jardim e preservá-lo, que, fruindo-o, nele introduzir a morte que circula em torno desses muros.

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