UMA REDE NO AR - Os fios invisíveis da opressão em Avalovara, de Osman Lins

Leitura por Temas: O ROMANCE Avalovara é estruturado em oito temas, indicados pelas letras R, S, A, O, T, P, E, N, cuja origem é o palíndromo SATOR AREPO TENET OPERA ROTAS. Cada uma das letras é acompanhada de um título. A disposição dos oito títulos obedece à ordem da inscrição das letras no quadrado, conforme a incidência da espiral que lhe é superposta, gerando uma estrutura não seqüencial.

No agrupamento por temas, desconstruímos o entrelaçamento dos temas e os dispomos em ordem seqüencial, tema por tema, formando oito unidades, cada uma com seu desenvolvimento contínuo. Isso possibilita um tipo de leitura seletiva, já previsto pelo próprio autor.

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Você está em Leitura por temas » Tema E - Ö e Abel: ante o Paraíso [E16]

Curvo-me e beijo os dedos arredondados dos pés, o peito arqueado dos pés com suas veias sutis, dois cordeiros nos ladeiam, ela amplia dócil à distância entre os joelhos e começa a falar, os braços soltos, a cabeça sem sossego, cruzam-se vozes discordantes e tumultuosas, um clamor impaciente, abrem-se as coxas e revela-se o acesso, a entrada, a via, o esconderijo, o N, o centro, emergindo entrealvuras e negrume, o bico rubro e as múltiplas dobras violáceas, satura o ar um cheiro forte de vinho, de rosas frescas e de chifre queimando, a fenda espumosa perde-se na sombra, um torso masculino esgueira-se entre as árvores do tapete, mais uma vez grita o pássaro, minha língua pesa, avanço, as noções de abertura, de ingresso e de conhecimento fundem-se no ato de avançar e descer lentamente sobre ela, os braços luminosos se estendem para mim, uma voz dentre as vozes implora com deleite e autoridade "Vem! Vem!", um grito, os cordeiros soltam um berro de boi no matadouro, o rosto esplende entre os cabelos com uma beleza inumana e violenta, ela enfia as unhas no meu flanco, ergue sôfrega a bacia, ergue-a, crava-me fundo em si. Faço-me ao seu corpo, penetrando, mais e mais fundo, voz potente dos cantores, gesto do Portador o cinto na alça do coldre, vultos translúcidos de sépia respiram fora das molduras, o pássaro e o grito ("Raah!"), o relógio o ritmo, a Cidade vôo luz do meio-dia, fundo e mais fundo o mergulho, cego? não. Revelações. As peças voadoras progridem sobre o vale, mais brilhantes à medida que progridem e de repente eu posso ver quanto diferem das formas - naturais ou mecânicas destinadas ao trânsito no ar. Voam em silêncio e sem asas e nada têm de orgânico nem de máquinas, lembram um circo em pedaços, arrancado com os mastros e as lonas, tudo - tapetes rubros, roupas brilhantes de acrobatas, partes da arquibancada; elefantes - trazido por um vento que a calmaria antecede. Leve para longe de mim esses entes informes o vento que os traz! Mudam de rumo e parecem desviar-se para o sul. Constato, nessa hora, mais os desejar que temer. Corrige-se a curvatura e há na formação uma aparência de desordem, um desequilíbrio logo superado. Abrem-se em ventarola os grandes pássaros irregulares, crescem em quantidade, em rapidez, em brilho, o Sol no zênite e o espaço ofuscante - como atravessado por partículas de ferro: limalha -, mas inflama-se o ar e outro dia, ensolarado, infiltra-se na luz do meio-dia e cega-me. Ela e ela, tu, o acesso, ó corpo mágico, ó glória e privilégio desta travessia, em quantas superfícies cruzadas reflexas opostas afundam falo e Abel, espaço de vozes e vozes e vozes e vozes, múltiplas bocas múltiplas, nossas línguas um laço, o ar que expira e seu odor ácido e quente, jasmins abertos Sol meio-dia, outro sexo oculto no seu sexo mastiga a glande atônita, exaure-se a cantata e cresce, entre súplicas e gritos, o compasso do relógio, Julius os engenhos conjugados de som, uma criança e um cão caberiam na caixa de madeira, Heckethorn, ventos ligeiros tapete bosque canto festivo de aves, meu nome se enuncia em algum ponto, dos corpos?, meu nome um centro?, o Portador e o curto relâmpago sobre os edifícios, ela grita o meu nome prende o meu rosto, arrebatada e enérgica, o nariz mais nítido e os lábios inchados e lépida chama rubra a língua e os quatro olhos abertos, cruza-me e rega-me, Abel, vê como te recebo e como te festeja a minha carne, ai, não mais o vilipêndio não mais a ofensa não mais o corpo solitário não mais, vem e cruza-me em triunfo com a tua vara florida, pertenço-te sem normas e sem exigências e abro ao teu ingresso tudo que sou e hei, amo-teamo-te-amo-te-amo, os cordeiros e seus guizos, os insuportáveis gumes do teu rosto, contemplo-o e beijo as aréolas, maiores os pêssegos e mais escuros, doces, tenros, maduros, curva a minha cabeça contra os peitos, a sucção, os beijos, a pele machucada entre os lábios e os rápidos signos esquivos que assomam nos bicos retesados, rápida multiplicação como se lanternas nascidas no seu corpo, mágicas, iluminando-a, reflexos?, emblemas?, insetos?, contas de vidro?, débeis lâmpadas veladas dentro do seu corpo, o grito acídulo do pássaro, afloram os signos e fermentam, vivos, os signos, outro corpo no seu corpo, lutam e devoram-se, nada a menos ou plácidos ou domesticáveis, enxame cambiante e rosnador, com sua força de dentes e seu fogo de pederneiras feridas com aço, indisciplinado combate, ela em si oculta, ela e ela, o vento e seu movimento, meteoro fogo cruza-me Abel carro de triunfo um Sol no alto do báculo, alto, alegrando o centro do meu ser, o cotovelo esquerdo para cima e a mão à altura do rim afago a planta sedosa do seu pé, seu calcanhar polido, ela alteia mais a perna em direção ao lustre, trança os pés nas minhas costas e nosso mútuo olhar, afetuoso, é também grave e atento, cada rosto uma inscrição, o destino ou o azo do outro, a chave, o veredito, a alternativa, a carta de baralho, a estrela, a sorte. O mal das coisas espantosas é que nos subjugam, arrastando-nos para as suas leis e natureza - e assim o nosso espanto, em face de um fenômeno novo, nunca ultrapassa os limites usuais: mágicas e monstros, afinal, pertencem ao nosso mundo e só o que nele não ingressa é realmente assombroso. Ofuscado e sentindo vacilar o chão sob os pés, levo as mãos à cara e por três vezes tento ver e a vista se desanuvia. Corpos desmesurados e leves como nuvens, velozes como pássaros, compactos, deslizam entre si e se aproximam do vale, sem ruído de nenhuma espécie e sem que se movam o cajueiro e as canas; o mundo estático. As sombras dançam na paisagem - grandes como pastos, açudes, boiadas - e os primeiros corpos descem ou abatem-se, torres e jardins, escadarias, esculturas, pórticos, uma cidade, a Cidade um dia anunciada, buscada, cujo encontro obseda-me e por fim se revela, se ordena, simula, violando espaço e tempo, uma forma particular de existência e alivia-me o fim da busca: à luz do meio-dia, descortino-a. O temporal armado a janela aberta sombreando a sala passar dos carros ganido das buzinas teus cabelos enlaçados nos ramos do tapete parecem haver crescido o Portador comprime as orelhas com as mãos abre a porta desce pela escada o vazio em torno dele os dois carneiros sobem no sofá a marcha dos ponteiros quatro e cinqüenta e quatro a marcha do mecanismo de som o raio a explosão outra explosão outra explosão pausa breve o estrondo e ainda outra explosão vibram as folhas de vidro nos caixilhos tua beleza um rugido no teu rosto a serra mecânica descargas hidráulicas bater de porta as exclamações os beijos a vertigem o rumor no teu sexo de laranjas sugadas ou expremidas abre-se a porta do Chrysler os vultos dos retratos interpostos entre nós e as paredes seu odor naftalina madressilva pó vagos borrões amarelos nos chapéus ano 1910 nos véus nas rendas nas botinas um clarão na sala seus espectros lívidos vem a chuva grossa respingos soprados pelo vento molham o chão ela alteia as ancas bate no meu dorso implora morde-me a boca. O livor dos relâmpagos movimentos das paredes e das sombras os rostos espantados das figuras que povoam a sala vivas as mesmas das fotografias o movimento triturante expande-se e amplia-se o ventre contraído ondear das ilhargas e das nádegas mais alto no meu sexo o anel o outro sexo o sexo escondido solerte e constritor escavo força e poder da minha insígnia escavo fundo firme e fundo quanto posso busco um centro um alvo um portão sou esta insígnia e busco seus cabelos agitados no meu braço direito e minha mão esquerda firme sobre o punho uma travessa arrastando-a para mim acunhando-a um golpe sua cabeça a de um ser torturado e rumores de asas de vôos próximos na cabeleira revolta trançada cheia de nó sibila a sua língua como um rabo de lagarto (a língua sibilante móvel dupla insaciável, a língua sopradora veludosa quente ágil cheiro de verniz sabor de amêndoas cheiro de manhãs sabor de cuspe cheiro de barricas sabor de pão cheiro de pano queimado sabor de leite a língua: dança na minha boca) escavo em busca do centro "Raahl" o Portador a chuva o odor de cavalo calçadas invadidas água cor de barro e na sala as crianças dos retratos golas marujo sépia os vestidos rendados laços de seda à altura dos quadris tu portagem tu pórtico tu porto eis que finda a travessia e as palavras me invadem a princípio em tumulto irrompem em mim horda ríspida e silente irrompem em mim e minha carne conhece-as conhece e sofre a presença desses insetos de mica lâmina veloz do relâmpago correm entre nós as palavras e com elas o caos a balbúrdia a barafunda os carneiros mochos fitas rubras guizos os carneiros entre os viçosos girassóis que pendem pétalas ouro a chuva estronda pesada.

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