UMA REDE NO AR - Os fios invisíveis da opressão em Avalovara, de Osman Lins
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Leitura por Temas: O ROMANCE Avalovara é estruturado em oito
temas, indicados pelas letras
R, S, A, O, T, P, E, N, cuja origem é o palíndromo SATOR AREPO TENET OPERA
ROTAS. Cada uma das letras é acompanhada de um título. A disposição dos oito
títulos obedece à ordem da inscrição das letras no quadrado, conforme a incidência
da espiral que lhe é superposta, gerando uma estrutura não seqüencial.
No agrupamento por temas, desconstruímos o entrelaçamento dos temas e os dispomos
em ordem seqüencial, tema por tema, formando oito unidades, cada uma com seu
desenvolvimento contínuo. Isso possibilita um tipo de leitura seletiva, já previsto
pelo próprio autor.
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Você está em Leitura por temas » Tema E - Ö e Abel: ante o Paraíso [E13]
A Cidade, faustosa e já em ruínas (textos de prestígio prometem a volta de legendários reinos submersos), aparece no centro da cisterna, como um peixe que houvesse crescido e envelhecido em segredo no fundo deste cubo, exatamente no lugar onde costumo indagar: "Que procuro?" Persigo uma caça ignorada, anos, caço na cegueira. Posso, se desconheço o objeto da procura, chegar um dia ao seu termo? Compulsiva, insensata e sem qualquer esperança a minha busca. Agora, próxima e contudo imaterial na sua transparência, a resposta se apresenta. Busco uma cidade, esta, com seus templos e suas construções profanas, algumas de um luxo para mim ofensivo, entre obeliscos e arcos, sobre colinas que separa um rio ou braço de mar. Que cidade é, porém, não sei, ela não se nomeia.
Sem objetivo, levanto-me num salto e corro em direção ao chalé. São que olhos, estes que me aparecem com a Cidade e percebem-na? Uma visão inteligente e aguda? A vinte passos da cisterna e dando-me conta das primeiras estrelas, surpreso apesar de vê-las há quase vinte anos, também vejo que os grãos de que é feita a Cidade, móveis como formigas e incontáveis, vão cisterna adentro e das torres e cúpulas algumas não mais apontam o céu de zinco (vozes dos meus irmãos e sons dos seus instrumentos, o vento move as frondes das mangueiras e suas folhas mortas), desfaço o percurso imotivado. As sombras adensando-se na água e no cimento rachado: e a Cidade boiando no centro do recinto, anacrônica, com suas praças de esmalte, circulares e não maiores que anéis. A sensualidade dos que a edificam manifesta-se em cada aresta de parede. Assim, as fortificações, expressão da soberba e da brutalidade militares, parecem nascer de mãos estrangeiras. Cedo são arrombados esses muros sólidos, desabam os torreões, as torres, as ameias, mas também vão-se as construções particulares e os templos, funde-se como sal a estátua do menino a quem o pai ou mestre parece oferecer num gesto largo o mundo, toda a Cidade alui no silêncio, dissolve-se em nada a Cidade e o seu mergulho na cisterna em nada perturba a superfície calma da água, em silêncio a Cidade deixa de existir e não me diz seu Nome. Dissolve-se a visão, sim, não me revela seu Nome, sim, mas a procura de seis ou sete anos afinal se define, sei por fim o que devo buscar e contemplar, sendo indispensável que o intente. Vai, Abel, busca a Cidade: eis a tua incumbência.
As cobras fogem ao calor do meio-dia na espessura do canavial. As sombras, vagarosas, das nuvens, deslocam-se através da paisagem, em direção a mim, cobrem-me e vão-se, arma-se e arma-se o encontro sonhado, vem a Cidade ao encontro do homem que - havendo-a farejado como um insensato por muitos países - admite o insucesso e renuncia à procura. Sua rota, na direção este-oeste, é perpendicular à direção do vento, que leva as nuvens para o sul.
Giramos abraçados e rindo sobre o largo tapete, o carneiro observa-nos, um de nós bate com o flanco na mesa de centro, tombam a mesa e o bule de prata agravando a desordem que o nosso desejo vai impondo, ela corre as mãos pelo meu corpo e prende num assomo os testículos como se receasse que fugissem, esmaga-os sem precauções, crava os dentes no meu ombro direito, cruzam-se as dores que me perfuram e a sua nudez ilumina esses atos veementes. O ar que expele entre os incisivos escalda-me a tábua do peito, enquanto (gestos de quem lida com alaúde ou lira) corre as pontas dos dedos no meu sexo, da base à glande, elevando-os, compassada, acima do nível real da glande. Modela um caule imaginário, muito longo - além de tenro - e o extremo do caule abre-se em umbela. O ar escaldante da boca vai pelo meu ventre, uma esfera nos envolve, ela beija o caule nodoso, vozes correm no caule, o caule cresce e desata-se a umbela que a sua mão modela, abre-se e abre-se e abre-se, grande guarda-sol, flor súbita e mágica onde vozes - como aves - habitam. Dois ou três sinais pontuam a uniforme alvura do seu dorso, tornando-o - não se sabe por que - mais deleitável. Outros surgem, agitados, a carne os absorve: maiores, reaparecem nos rins. Ela explora com unhas penetrantes a região em torno do meu sexo, busca a raiz obscura da força que o alça, beija-o, beija-o voraz e seus cabelos rastejam sobre ele. Pesam os culhões como pedras e as pedras me queimam, ovos de fogo, abro em cruz os braços, clamo ou julgo clamar o seu nome - e o tapete me recebe entre pássaros e flores, um tiro. A visão lampeja em mim - um tiro - e ensurdece-me, eu sob a umbela no seu caule, a meus pés um rio imóvel e do outro lado, nua e severa, eu, ela e a umbela que me cobre (e ainda o rio imóvel) cobertos por uma árvore de nove ramos imensos, árvore das árvores, os ramos, nove, como estradas e veredas, signos incontáveis entrançados sem ordem, os signos, no corpo nu do outro lado do rio, tão visíveis que bem os posso tomar por sombras e réstias das flores, dos frutos, da folhagem nos nove ramos desmedidos. Essa rede ilegível, entretanto, constitui seu corpo, o mesmo corpo e outro, e não devo crer que sobre ele se projete. Ela: carnal e também ente verbal. Imóvel como o rio cujas margens, nus, demarcamos, é a hora clara e sem cuidados que faz parte deste mundo, visto - um lampejo - e logo perdido: um tiro.
Vibra um trovão, distante, no céu com poucas nuvens e lívido. Sem interromper a marcha, menos rápida que o apagado compasso de tambores na pista de corridas, Olavo Hayano volta com dificuldade a cabeça que a nuca pouco flexível constringe. Abre sem pressa a porta do Chrysler e parece avaliar as batidas dos tambores antes de ligar o motor. Atravessa em linha reta, lento, o pátio varrido e calçado com pedras irregulares, roçam na capota as folhas mais baixas dos plátanos. As sentinelas apresentam armas e ele continua voltado para a frente, as mãos espessas segurando o volante com firmeza. Hayano: o Portador. Soturno e temível.
Quem mantém o lençol contra a parede do quarto? A questão seria irrelevante, que importa, afinal, se está suspenso como nuvem esse lençol de sonho ou se o erguem mãos de mortos?, mas se sei quem o segura também sei por que está aqui e o que significa. Seu cheiro múltiplo e enovelado, de capim, de sândalo, de cedro, de glicerina, de hortelã, de rosas frescas, mescla-se ao perfume de que o fular e as suas lagartas estão impregnados. Quero escapar do sortilégio, e, sonhando estar consciente de que sonho, luto por despertar. Acaso dormiremos sob a terra? Abaixo de nós mesmos? Subo do sono, das profundezas do sono, devagar e arduamente, subo, o sono pressiona-me e eu venço-o - e de súbito, as mãos sobre o estômago, na mesma posição e circunstâncias do sonho, vejo que estou livre. Livre? O globo apagado, um halo marcando o centro do forro envernizado, sons nas ruas, passos na escada, visível na penumbra a parte superior das paredes, o perfume, cheiro de hortelã, de sândalo - e o lençol pendendo sobre a pintura a óleo, o lençol, não encerrado nos limites do sonho. Ouço, acordado, tecidos rasgando-se: rasgar frouxo de trapos, rasgar cantante de veludos, tenso rasgar de sedas, lonas (som rascante e grave).
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