UMA REDE NO AR - Os fios invisíveis da opressão em Avalovara, de Osman Lins

Leitura por rotas: são incursões no romance, mediadas pela leitura dos pesquisadores e concretizadas no dispositivo hipertextual criado. As rotas estruturam e tornam visíveis as articulações que se apresentam diluídas em fragmentos textuais do romance. Para a determinação das rotas, consideramos a possibilidade de navegação por rotas lexicais e unidades temáticas.

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Estende-se na paisagem a Cidade, dominada por um alvo templo arredondado e cingindo-a uma tríplice muralha com dispositivos de defesa - torreões e ameias. Quando se for, não serei eu um velho, muitas vezes tendo as foices dos cassacos cortado e replantado este canavial? As elevações que a flanqueiam (numa das quais reconheço um cemitério cercado de ciprestes hirtos) estavam aqui ou não antes da sua vinda? Corresponde ao meu o seu norte verdadeiro? Arrancada do mundo, tem algo de uma ilha simulada, sem águas em redor, território cercado de desmoronamentos, os limites anulados por fantásticas máquinas de terraplenagem. Amplo é o gesto do colosso que indica o horizonte a um menino e transparece no seu rosto tão evidente soberba que nele creio ver o reflexo do mar e de muitos barcos com cargas de valor, mas, na verdade nada me garante que a Cidade seja portuária - e, portanto, não saberei se as águas que a dividem e nas quais se reflete o mesmo Sol que me queima são um braço do mar ou algum rio imóvel, vindo também pelos ares com o seu leito ilusório. Outra incógnita, cheia de irradiações cerca o evento, a Cidade vem a mim e mostra-se, com isto a caçada termina mas outra se inicia, pois a Cidade aparece-me inominada (o caçador abate um animal Sem nome), tenho então de buscar o nome da Cidade ou seu equivalente, uma espécie de metáfora, que, concisa, expresse um ser real e seu evoluir e as vias que nele se cruzem, sendo capaz de permanecer quando tal ser e seus caminhos não existam. Esta escuridão no que se refere ao contorno da Cidade e ao seu nome se opõe ao que sei (até que ponto e por intermédio de que indicações?) a respeito do que jaz sob os seus discutíveis alicerces. Sob a Cidade há outras, a Cidade existe sobre os ossos de doze outras cidades varridas pelo tempo ou por outros flagelos, sei que estas cidades suportam a sua altivez e que a água das cisternas, na Cidade, tem um sabor específico e mesmo inquietante, um sabor de admonição e ameaça. O nome ou metáfora de nome, como a Cidade, deve repousar sob doze cidades soterradas.

Crivada de torres e sendo ela própria o capitel – ou mesmo o friso e arquitrave - de uma vasta coluna soterrada cujo pedestal e fuste as doze outras cidades constituem, a Cidade, com uma topografia tão movimentada como a paisagem do Nordeste sobre que, efêmera, desce e pousa, com suaves depressões entre cômoros arredondados, ostenta o seu fastigio em tudo: nas vinte e nove portas das muralhas e na pompa das demais construções. Mesmo os fossos entre as três muralhas, faixas sombreadas onde limoeiros, plátanos e laranjeiras floridas se alternam, testemunham fartura e gosto de viver. Certos conjuntos - o alvo templo de mármore, o Hipódromo, com esculturas de carros e cavalos, o Arsenal e um palácio quadrado, mais amplo do que todos, no centro de uma esplanada verde - quase obscurecem os outros domos e torres, os reservatórios limpos e as ruas calçadas de pedras. Neles alcança o auge a suntuosidade que se manifesta no material dos obeliscos, nos motivos vegetais e zoomórficos dos pórticos e frontões lavrados, nos tetos glaucos de faiança e onde o Sol se reflete.

Sobre o esplendor e a harmonia da Cidade pesa uma nota sombria. Tem a Cidade, na sua deslumbrante riqueza, algo de um cadáver podre e perfumado. Além disto, a ausência de bichos - existentes apenas nos entalhes, mosaicos e esculturas - e também de movimento, mesmo as ramagens e as flores como que petrificadas, isto e a erosão em redor da Cidade, separando-a das estradas e tornando inviável a aproximação dos homens, com os seus detritos e tumultos, esse isolamento monstruoso que as três linhas de muralhas, cada uma com três metros de espessura, reforçam e expressam, confere ao radioso aglomerado de torres, balaústres, fachadas e pomares, uma espécie de mudez ou de insanidade. A Cidade: tartaruga sem cabeça.

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