UMA REDE NO AR - Os fios invisíveis da opressão em Avalovara, de Osman Lins

Leitura por rotas: são incursões no romance, mediadas pela leitura dos pesquisadores e concretizadas no dispositivo hipertextual criado. As rotas estruturam e tornam visíveis as articulações que se apresentam diluídas em fragmentos textuais do romance. Para a determinação das rotas, consideramos a possibilidade de navegação por rotas lexicais e unidades temáticas.

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Você está em Leitura por rotas » Olavo Hayano [O22]

e Olavo Hayano na poltrona de couro, bracos cruzados, os cotovelos nos joelhos grossos, os pés firmes no chão. Olha-me, fixo, com o seu olhar remoto e inquietante. Eu devo perguntar, em tom de suspeita e com uma sombra de cólera, o que faz no escritório. Não falo. Hayano, contudo, como se a pergunta fosse proferida (e assim toda a cena flui segundo está escrito que se cumpre) esclarece:

- Estou aqui por causa do silêncio. Há um rumor que me aflige noite e dia. Tento identificá-lo. Um zumbido constante, não exatamente igual ao canto das cigarras, nem ao trilar dos grilos, nem ainda ao ruído de uma serra. Uma fusão de todos esses sons e de outros é o que ouço a toda e qualquer hora. Quando desperto, ouço-o. Penetrante, contínuo. Ouço-o até que adormeço e pelo sono adentro. Talvez por isso haja tantos mortos nos meus sonhos. Mortos coléricos.

Ligar-me a Olavo Hayano é como atravessar um passo, com lodo até a boca, para chegar — talvez — ao outro lado. Diz a minha história: serei encaminhada de modo à encontrá-lo. A função dele é cercar-me, romper-me, demolir em mim o que está construído, tentar impor-me o seu mundo, o seu modo. Um combate prolongado. Ao mesmo tempo, não está previsto que alguém, seja quem for, obrigue-me ou induza a travessia. Tenho de ir por mim, com o ar de quem não saiba que a catástrofe é certa e como se movessem-me esperanças. Eu, um cofre ataviado e a certeza no fundo — uma ampola de veneno. Eu, amada e amante, aos olhos dos demais e aos meus próprios olhos: um cofre esmaltado com motivos florais, radioso. Mas eu, sendo o cofre, sei, sei sem clareza, sim, sem clareza, mas sei, o que trago sob as chaves — a ampola, o veneno. Vai, cega, atavia-te e entra nesse jogo não muito diverso do que destrói tua mãe. Ama este homem e seu vácuo, solda teus pés e mãos nos dele. Depois, seja a luta para te arrancares a esse jugo, só através disso podes chegar a ser. Pois se não há saída para a fazedora de chapéus, há para ti. Mais: toda saída válida, em teu labirinto, há de passar por este crivo. Olavo Hayano é algo a cumprir. Um rito. Então, sem olhos, começo a liberar em mim o amor ou seus sinais por um homem a quem não amo. Tiro a pala da testa, jogo-a outra vez sobre a mesa. Perder tempo é inútil. Digo, adiantando-me a Hayano e apertando o ritmo da cena: - Sou muito jovem ainda. Estou estudando.

- Já sabe mais do que a maioria. Basta olhar para você. Depois, não é preciso vir a saber mais do que sabe. A sabedoria é dolorosa. E então?

O vazio, o vazio. Um sorvo. Apago a luz do abajur e no mesmo instante, com uma rapidez que contradiz todos os seus gestos, ele acende-o. Vejo que está pálido, verdáceo. O vazio. Quando ele entra com a mãe e senta-se na sala, eu criança, nessa manhã de chuva, o vazio que o cerca me repele, afasta-me. Quando me confessa o início de surdez, o zumbido, é o contrário: atrai-me, e eu vou indo. Ele ajuda-me com a sua voz impessoal:

- Queria fazê-la feliz.

O riso vem-me à boca, um vômito. Eu engulo-o. O diálogo torna a aparência livre e ao mesmo tempo mecânica, fatal, de uma partida de damas. A repetiçâo de outras partidas velhas e nem por isto menos decisiva:

- Nada tenho, você sabe. Meus pais...

- Não me interessam. Só você me interessa. — Curva-se sobre a mesa, fita-me de perto e, por um instante, seu olhar sonda os meus, vacilando. Baixo os olhos. — Quero que seja minha mulher.

Eu, sempre de pálpebras descidas, fico em silêncio. Não respondo. Não devo responder. Minha mão esquerda repousa sob a lâmpada, solta, para que Olavo Hayano se encoraje a tocá-la. Ele toma-a entre as suas, beija-a. Minha expressão é a de quem se compromete a refletir sobre o que houve e também a de quem pesa, perplexo, as próprias incertezas.

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