UMA REDE NO AR - Os fios invisíveis da opressão em Avalovara, de Osman Lins

Leitura por rotas: são incursões no romance, mediadas pela leitura dos pesquisadores e concretizadas no dispositivo hipertextual criado. As rotas estruturam e tornam visíveis as articulações que se apresentam diluídas em fragmentos textuais do romance. Para a determinação das rotas, consideramos a possibilidade de navegação por rotas lexicais e unidades temáticas.

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Você está em Leitura por rotas » Reflexões sobre narrativas [T6]

Retiro da gaveta, na pensão, as páginas escritas da história que venho elaborando. (A gaveta exala um odor inexplicável e nunca dissipado de pólvora.) Começam a definir-se, no papel, os perfis das quatro irmãs, todas septuagenárias e cada uma ansiando por sobreviver às outras. Para quê? Não sabem. Vivem na mesma casa - isto me permite acentuar o ódio com que se espreitam entre si. Mas o cenário onde se movem - o chalé de Olinda, reproduzido com a possível exatidão - continua a desgostar-me. Tento, em vão, evocar o labirinto de quartos e alcovas, com roupa pendurada atrás das portas, às vezes cheirando a virilhas. Pinto de azul o forro de madeira, aqueço no fogão de pedra as panelas desmedidas e ladrilho o piso com mosaicos. Introduzo o mobiliário desigual, que aumenta junto com a minha família e se deteriora usado pelas velhas. (Tudo, às vezes, no mundo, cheira a verrugas, a cascas de ferida e a unhas secas.) Deixo de mencionar os instrumentos de música negligenciados nas gavetas, o piano East Coker, os jarros pomposos, o enorme espelho entre arandelas na sala de visitas e o retrato oval de casamento. Mantenho, com alguma ênfase, a estampa alemã do tempo de Holderlin, representando três jovens fiandeiras. Faço ainda entrar o sol pelas bandeiras de vidro - colorido no chalé real e branco no fictício. Represento, afinal, com mão grosseira, o seu interior, onde as cortinas de renda com cenas de caçadas ondulam ao vento terral. Mais inábil a extensa descrição do exterior. O teto de duas águas, inclinado sobre as paredes laterais, o beiral sombreando os oitões e a fachada, os lambrequins de um azul desbotado, acompanhando a linha dos beirais e alçando-se em frontão com um mastro torneado no vértice mais alto, a flor geométrica, posta à maneira de tímpano no meio do frontão, cercada por um círculo e tendo ao centro uma esfera azul de vidro, as molduras brancas das janelas, o alpendre à esquerda também com lambrequins, cada pormenor (e, mais do que todos, a pintura nas paredes, em ocre, anil e branco, imitando cubos transparentes, disto resultando uma inútil aparência de relevo) exige-me centenas de palavras e acaba sempre numa construção desmesurada, sem peso, cujos telhados flutuam como asas.

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