UMA REDE NO AR - Os fios invisíveis da opressão em Avalovara, de Osman Lins

Leitura por rotas: são incursões no romance, mediadas pela leitura dos pesquisadores e concretizadas no dispositivo hipertextual criado. As rotas estruturam e tornam visíveis as articulações que se apresentam diluídas em fragmentos textuais do romance. Para a determinação das rotas, consideramos a possibilidade de navegação por rotas lexicais e unidades temáticas.

Imprimir tudo    Voltar

Você está em Leitura por rotas » Reflexões sobre narrativas [S8]

O quadrado a que já nos referimos e que constitui, por assim dizer, o recinto desta obra - a qual, sem isto, arrastada pelo galope incansável da espiral, perder-se-ia por falta de limites -, subdivide-se em vinte e cinco: os vinte e cinco quadrados com as vinte e cinco letras da frase que custou a vida de Loreius. Cada quadrado, como as divisões do ano abrigam o nome de um mês, como os raios da rosa invisível dos ventos abrigam a designação de um ponto cardial ou intermediário, cada quadrado, dizemos, abriga uma letra. Estas, conquanto sejam ao todo cinco vezes cinco, longe estão de totalizar o alfabeto. Não passam de oito, sendo que o S e o P aparecem duas vezes; e as demais - à exceção do N, que não se repete, surgem quatro.

Tendes então a simples - embora não usual - estrutura do livro. A cada uma das oito diferentes letras corresponde um tema, que volta periodicamente, sempre que o giro cada vez menos amplo da espiral a ela retorna, depois de haver provocado o aparecimento ou reaparecimento de outro, de outros. A espiral sobrevoa os vários temas; e estes não voltam por acaso, nem por força do arbítrio ou da intuição do autor, mas governados por um ritmo inflexível, uma pulsação rígida, imemorial, indiferente a qualquer espécie de manejos.

Acentuaremos, para que se perceba com facilidade o nexo da concepção, que ambiciona ser tão clara quanto possível, as relações entre a espiral e a frase de Loreius. A princípio, uma e outra parecem imensamente afastadas entre si ou unidas tão-só pela comum estranheza. Aprofundando o exame, descobrimos as mútuas semelhanças, reais como as que existem entre um Z tipográfico e um manuscrito, e evidentes para quem os mistérios da escrita são familiares, conquanto inacessíveis aos que ainda não aprenderam a ler.

Vimos claramente: a espiral, parecendo avançar num determinado sentido, é na verdade uma imagem de retorno, de vez que os seus extremos, por inconcebíveis, tendem a unir-se. Seu princípio é seu fim e, além disto, quer como figura que imaginariamente avança para os centros, quer como figura que deles se distancia, é sempre uma espiral. A frase de Loreius tem o mesmo caráter de imutabilidade: pode ser lida em qualquer sentido; por outro lado, em sua aparente abertura, cerra-se sobre si própria. Acontece, às vezes, dois irmãos serem dessemelhantes. Pelo menos, julgamos assim até conhecermos um terceiro irmão (ou uma irmã) com quem ambos se parecem. Perceberemos melhor o obscuro parentesco entre a espiral e a sentença mágica de Loreius se nos dermos conta das relações entre ambas e certas figuras míticas com as quais também à primeira vista nada parecem ter em comum, como o dragão com duas cabeças (sendo uma no lugar da cauda), a anfisbena e, principalmente, com o deus Jano, possuidor ambíguo de dois rostos, um voltado para a frente e outro para trás, de modo que não tinha espáduas, ou melhor, suas espáduas eram também seus peitos. A frase de Loreius, tal esse deus (cujas insígnias, por sinal, eram a vara e a chave, uma para afugentar os intrusos, outra para abrir as portas), não olha em direções opostas? Não representa a espiral, igual a Jano, um simultâneo ir e vir, não transita simultaneamente do Amanhã para o Ontem e do Ontem para o Amanhã? Não se conciliam, em seu desenho, o Sempre e o Nunca? Também não se deve esquecer que um dos símbolos preferidos pelos alquimistas era o do matrimônio entre o Sol e a Lua, representados como um hermafrodita, um corpo dúplice, apodrecendo num esquife. O pensamento que dominava esta representação - onde se viam, num corpo, duas cabeças, como as de Jano - era o da morte seguida da ressurreição.

Tanto a espiral como a frase que temos sob os olhos parecem tensas dessas fusões de contrários. Existe um ponto, um centro, um N para o qual tudo converge. O S de SATOR é o mesmo de ROTAS. No quadrado e na espiral, o Lavrador tem dois rostos e vem em duas direções, vem das cercas do campo, cavando em rumos opostos, sob estações simultâneas. Por último: não são todas, essas, concepções da inquietude humana - deus, anfisbena, espiral, casal alquímico, dragão bicéfalo e frase palíndroma - sem princípio e sem fim, ou cujo fim, se existe, coincide com seu próprio início?

© Copyright 2012 - UMA REDE NO AR :: Os Fios Invisíveis da Opressão em Avalovara, de Osman Lins. All rights reserved.

Centro Universitário Ritter dos Reis - Rua Orfanatrófio, 555 - Cep: 90840-440 - Porto Alegre/RS - Brasil | Telefone: +55 (51) 3230.3333