UMA REDE NO AR - Os fios invisíveis da opressão em Avalovara, de Osman Lins

Leitura por rotas: são incursões no romance, mediadas pela leitura dos pesquisadores e concretizadas no dispositivo hipertextual criado. As rotas estruturam e tornam visíveis as articulações que se apresentam diluídas em fragmentos textuais do romance. Para a determinação das rotas, consideramos a possibilidade de navegação por rotas lexicais e unidades temáticas.

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Você está em Leitura por rotas » Reflexões sobre narrativas [O24]

O Avalovara renasce no betume, livre da mudez e da imobilidade a que está condenado desde a hora em que Olavo Hayano me estupra com sua glande fria; empluma-se o esqueleto de fóssil incrustado na minha carne (como, na memória, um nome), desata-se, leve, com seus ossos de ar, fogo de artifício rompendo as trevas compactas. Abro os olhos: Avalovara, o pássaro do meu contentamento.

Ataviado com todas as cores dos pavões, o Avalovara lembra um manuscrito iluminado. Nele, quase é possível ler. A cauda é longa e curva, com reflexos de cobre. As asas, seis, de um tom verde celeste quando repousadas, ostentam na face interna, quando abertas, círculos de muitas cores, dispostos com simetria sobre fundo escarlate. Vejo-as adejando e nada ouço. Ele voa, o pássaro, da mesa para o chão e do chão para cima do relógio, como se fosse oco, um pássaro de ar. Trançadas no seu peito, faixas e fitas roxas. Da delicada cabeça, parecendo ornada com um diadema de pequenas flores e encimada por uma espécie de língua, descem longas plumas muito claras, semelhantes a flâmulas. Rosa brilhante o resto do corpo. Bico rubro e curto, olhos oblíquos. Quando esvoaça, aflante, o mover das seis asas desprende um odor de paina e não parece que voar lhe pese: todo o sem corpo é asas. Cai a chuva, cai no alto dos prédios, atirada com força pelo vento, cruza os andaimes, emaranha-se nas árvores, lava as paredes voltadas para o sudoeste.

O Avalovara, assustado, desce do relógio, sobrevoa um segundo o dorso de Abel e vem pousar no tapete. Duas ou três penas se desprendem, esvoaçam, retornam ao seu corpo. Descubro: é um ser composto, feito de pássaros miúdos como abelhas. Pássaro e nuvem de pássaros.

O pássaro ergue vôo e se olha ante um espelho. Cincerros no meu ventre. Eu, feliz? Eis-me feliz.

O pássaro, ante a janela aberta, bate os três pares de asas.

Peças esparsas conjugam-se e eu julgo entrever a razão por que meto uma bala no peito em minha noite de núpcias. Desvela-se a estrutura até aqui incompleta e inacessível a parte mais grosseira do meu entendimento. Quatro e cinqüenta e oito? Os objetos claros e as paredes guardam o fulgor dos relâmpagos. Volto ao apartamento — seus bichos de vidro, seus narguilés -, apago todas as luzes. O Avalovara (as asas bem abertas, os pequenos saltos ondulantes) move-se em torno de mim e de Abel.

alteia-se ainda o Avalovara entre relâmpagos, e de súbito percebo que um pássaro igual — o mesmo? —, quase legível e também feito de pássaros, voa em nossos corpos unidos, leve,

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