UMA REDE NO AR - Os fios invisíveis da opressão em Avalovara, de Osman Lins

Leitura por rotas: são incursões no romance, mediadas pela leitura dos pesquisadores e concretizadas no dispositivo hipertextual criado. As rotas estruturam e tornam visíveis as articulações que se apresentam diluídas em fragmentos textuais do romance. Para a determinação das rotas, consideramos a possibilidade de navegação por rotas lexicais e unidades temáticas.

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Muitos dias no leito, entre dormindo e desperta, em silêncio. Sem ânimo sequer de abrir os olhos, porém com um novo e passageiro sentido à espreita em algum ponto do meu ser (ou este sentido é o meu ser total que se aguçou?), percebo os lentos e solenes movimentos do mundo, a montagem da máquina. Outro nome poderia ter este imenso aparato que aos poucos se organiza no espaço?

parecem-me disfarces, uma cortina de pequenos acontecimentos ilusórios, para ocultar o evento verdadeiro, o que me diz respeito e se relaciona com o meu destino - a formação da máquina. As grandes peças vão surgindo (quem sabe de onde vêm?) e ajustam-se, organizam-se, chapas oxidadas de um navio com a quilha voltada para mim. Toda a máquina se arma em função do ponto em que estou. Semelha um navio? Talvez evoque, de maneira ainda mais aproximada, uma esquadra numerosa, não ancorada no mar e sim no ar, dispostas as naves em formação cônica e de tal modo que eu seja o vértice do cone. O avançar do tempo é marcado pelas límpidas pancadas que se irradiam do Mosteiro de São Bento. Noite e dia, numa elaboração que parece interminável, forma-se a gigantesca máquina ou esquadra, forma-se, acrescenta-se e suas juntas rangem se o vento se levanta. Parece estar concluída, aprestada para a sua missão, que desconheço qual seja. Quando menos espero, uma unidade ou outra se desloca, as partes das quais se separam vão preenchendo o claro, enquanto as unidades desloca das reaparecem além ou voltam à sua origem ignota. São três ou quatro horas da manhã quando afinal se completa.

A máquina, etérea mas real, seu arcabouço intangível invadido em parte pela estrutura concreta do Martinelli, a máquina, varada por morcegos e tão alta que as últimas peças engolfam-se nas nuvens negras, nas nuvens dessa noite sem estrelas, a máquina se move e pousa delicadamente em mim. Gira e zumbe, assemelha-se a um pião em movimento, gira, giro vagaroso, zumbe e quase inaudível é o rumor que produz. Não tenho dificuldades em compreender que a sua lenta formação é puramente simbólica, que nada a impediria de formar-se mais rapidamente e que mesmo o fenômeno da formação da máquina seria dispensável, uma vez que, na verdade, sua existência é anterior à consciência que eu tenho de sua presença e de sua própria fabricação. A máquina, suavemente, gira sobre mim, a ponteira pousada no meu ventre. Seu giro capta os fastos do mundo, a ressonância dos fastos do mundo, mói em suas rodas as coisas e os eventos, verte-os em mim. Nas trevas, no silêncio, sem ninguém que me ajude a suportar esse momento em que, sob o vértice da máquina, suporto o seu peso, não, bem entendido, um peso físico, mas um peso que nasce da sua grandeza e da sua austeridade, processa-se em mim uma mudança de estágio, uma sagração. Sou, nessa hora, a partir dessa hora, a foz terrível das coisas, o ponto ou o ser para onde converge, com suas múltiplas faces, o que o homem conhece, o que julga conhecer, o de que suspeita, o que imagina e o que nem sequer lhe ocorre que exista.

Mas a ponteira da máquina, esta máquina semelhante a uma esquadra completa, de luzes apagadas, suspensa no ar e manobrando lenta, em círculo, na mesma direção, crava-me no ponto em que estou. As bocas infantis não se aproximam nem se distanciam. Vêm mesclar-se à celeuma das crianças algumas vozes de homem. Distingo, claramente e de súbito, palavras soltas, tão próximas como se fossem ditas no meu quarto. Então, percebo-me inundada, povoada de vozes, vozes no meu sangue, nas costelas, nos maxilares, nos cabelos, nos olhos, nas unhas, muitas vozes. Gritos e palavras nadando ou revoando em mim, eu invadida por uma multidão de vozes, eu desfeita em vozes. Como se eu fosse uma escultura de areia fina e cada grão uma voz, uma palavra e suas danações.

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