UMA REDE NO AR - Os fios invisíveis da opressão em Avalovara, de Osman Lins

Leitura por rotas: são incursões no romance, mediadas pela leitura dos pesquisadores e concretizadas no dispositivo hipertextual criado. As rotas estruturam e tornam visíveis as articulações que se apresentam diluídas em fragmentos textuais do romance. Para a determinação das rotas, consideramos a possibilidade de navegação por rotas lexicais e unidades temáticas.

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Você está em Leitura por rotas » O Escravo Loreius [S10]

No dia em que Loreius, desesperado, mata-se diante de Tyche, Publius Ubonius, entre os sobressaltos de um sono agitado, sonha com o Unicórnio. Os seres e objetos dos sonhos, segundo a crença geral, são impalpáveis. O espanto de Ubonius, ao despertar, decorre desta incongruência: no seu peito esquerdo há um leve arranhão; estrias bem visíveis, e que logo desaparecem, marcam em diagonal a palma da sua mão direita. No sonho, ao ver o Unicórnio, ele passara a unha no peito, para certificar-se de que não sonhava; depois, segurara com força o chifre da besta, numa tentativa de rebelião contra as ordens que dela recebia. O chifre, não liso nem de uma só cor, porém dourado e branco (dois fios paralelos, mais ou menos acerados, contornando-o em espiral, à maneira das colunas salomônicas), deixara as suas marcas na mão rebelde e temerosa de Ubonius.

Indícios tão pouco vulgares fazem com que o sonho do negociante seja conhecido em todas as esquinas de Pompéia, cruze o mar Tirrênio, o Mediterrâneo, chegue ao Egito e seja transcrito em documentos. O Unicórnio dava ordens a Ubonius. "O Quadrado Mágico é a Terra - dizia-lhe. Move-te pois de onde sonhas, gira dentro de N, dentro de Pompéia, invade o E, o P, o E, o R, novamente o E, ainda o P, mais uma vez o E, não te detenhas."

As determinações do Unicórnio obrigam Ubonius a caminhar sem trégua, não por exemplo em direção ao Norte, mas em espiral, sobre um mapa jamais visto, demarcado pelas cinco palavras simétricas. Em outros termos, condenam-no a mover-se pelo resto dos seus dias, buscando a cauda da Eternidade, em cuja extremidade encontrará, fincada como numa lança, a cabeça do escravo, único ser no mundo com o poder de perdoá-lo pelo mal de haver-lhe roubado o segredo. Publius Ubonius não tem ilusões: a peregrinação será interminável.

Decide-se, mesmo assim, a empreendê-la, discutindo-a antes com todas as pessoas que encontra. Um mercador de Lâmpsaco, a terra de Loreius, havendo debatido com Ubonius, durante vinte horas seguidas, o seu sonho, e preocupado, não exatamente com a ordem dada pelo Unicórnio, e sim com o fato de que este, criação de um sonho, desse ordens, convence Ubonius de que tudo isto deve ser entendido de outro modo. O Unicórnio, e muito menos um Unicórnio onírico, ainda que nos deixe na mão a marca do seu chifre, não tem poderes sobrenaturais. Faça a distinção. Haver engendrado, em sonhos, um Unicórnio que lhe dá ordens,

significa que o homem - seja na vida, seja na arte, tem de elaborar, juntamente com outras coisas, criações que regulem os seus atos e as suas próprias criações. - Que sentido têm, por exemplo, tuas preocupações com a divindade, se não alcançaste sequer uma moral? Qual a importância de especulares, como fazes, sobre o incompreensível, a ponto de prometeres a liberdade a um escravo teu, caso ele descubra uma frase que aplaque a tua fome de mistério, se és capaz de - desatento ao mistério imediato das relações entre o homem e as suas descobertas, e sem respeito algum pelo espanto do homem em face das suas próprias criações - roubar-lhe o que naturalmente lhe pertence, violando-o em sua intimidade a ponto de o levares à morte? O sonho, Publius Ubonius, significa que ainda não criaste o teu Unicórnio e que precisas dele. Sem isto, és apenas um homem que dorme, embora fale dormindo. As circunstâncias propícias acolhem estas palavras do mercador frígio. Vê Publius Ubonius, num relance, a extensão dos seus enganos. Abandonando o hábito de sobre tudo informar-se e de fazer perguntas sobre tudo, concentra as suas energias em transpor para a vigília o Unicórnio do sonho. Uma manhã, ao despertar, o Unicórnio está deitado junto à cama, olhando-o.

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