UMA REDE NO AR - Os fios invisíveis da opressão em Avalovara, de Osman Lins

Leitura por Temas: O ROMANCE Avalovara é estruturado em oito temas, indicados pelas letras R, S, A, O, T, P, E, N, cuja origem é o palíndromo SATOR AREPO TENET OPERA ROTAS. Cada uma das letras é acompanhada de um título. A disposição dos oito títulos obedece à ordem da inscrição das letras no quadrado, conforme a incidência da espiral que lhe é superposta, gerando uma estrutura não seqüencial.

No agrupamento por temas, desconstruímos o entrelaçamento dos temas e os dispomos em ordem seqüencial, tema por tema, formando oito unidades, cada uma com seu desenvolvimento contínuo. Isso possibilita um tipo de leitura seletiva, já previsto pelo próprio autor.

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Você está em Leitura por temas » Tema S - A Espiral e o Quadrado [S10]

No dia em que Loreius, desesperado, mata-se diante de Tyche, Publius Ubonius, entre os sobressaltos de um sono agitado, sonha com o Unicórnio. Os seres e objetos dos sonhos, segundo a crença geral, são impalpáveis. O espanto de Ubonius, ao despertar, decorre desta incongruência: no seu peito esquerdo há um leve arranhão; estrias bem visíveis, e que logo desaparecem, marcam em diagonal a palma da sua mão direita. No sonho, ao ver o Unicórnio, ele passara a unha no peito, para certificar-se de que não sonhava; depois, segurara com força o chifre da besta, numa tentativa de rebelião contra as ordens que dela recebia. O chifre, não liso nem de uma só cor, porém dourado e branco (dois fios paralelos, mais ou menos acerados, contornando-o em espiral, à maneira das colunas salomônicas), deixara as suas marcas na mão rebelde e temerosa de Ubonius. Indícios tão pouco vulgares fazem com que o sonho do negociante seja conhecido em todas as esquinas de Pompéia, cruze o mar Tirrênio, o Mediterrâneo, chegue ao Egito e seja transcrito em documentos. O Unicórnio dava ordens a Ubonius. "O Quadrado Mágico é a Terra - dizia-lhe. Move-te pois de onde sonhas, gira dentro de N, dentro de Pompéia, invade o E, o P, o E, o R, novamente o E, ainda o P, mais uma vez o E, não te detenhas." As determinações do Unicórnio obrigam Ubonius a caminhar sem trégua, não por exemplo em direção ao Norte, mas em espiral, sobre um mapa jamais visto, demarcado pelas cinco palavras simétricas. Em outros termos, condenam-no a mover-se pelo resto dos seus dias, buscando a cauda da Eternidade, em cuja extremidade encontrará, fincada como numa lança, a cabeça do escravo, único ser no mundo com o poder de perdoá-lo pelo mal de haver-lhe roubado o segredo. Publius Ubonius não tem ilusões: a peregrinação será interminável. Decide-se, mesmo assim, a empreendê-la, discutindo-a antes com todas as pessoas que encontra. Um mercador de Lâmpsaco, a terra de Loreius, havendo debatido com Ubonius, durante vinte horas seguidas, o seu sonho, e preocupado, não exatamente com a ordem dada pelo Unicórnio, e sim com o fato de que este, criação de um sonho, desse ordens, convence Ubonius de que tudo isto deve ser entendido de outro modo. O Unicórnio, e muito menos um Unicórnio onírico, ainda que nos deixe na mão a marca do seu chifre, não tem poderes sobrenaturais. Faça a distinção. Haver engendrado, em sonhos, um Unicórnio que lhe dá ordens, significa que o homem - seja na vida, seja na arte, tem de elaborar, juntamente com outras coisas, criações que regulem os seus atos e as suas próprias criações. - Que sentido têm, por exemplo, tuas preocupações com a divindade, se não alcançaste sequer uma moral? Qual a importância de especulares, como fazes, sobre o incompreensível, a ponto de prometeres a liberdade a um escravo teu, caso ele descubra uma frase que aplaque a tua fome de mistério, se és capaz de - desatento ao mistério imediato das relações entre o homem e as suas descobertas, e sem respeito algum pelo espanto do homem em face das suas próprias criações - roubar-lhe o que naturalmente lhe pertence, violando-o em sua intimidade a ponto de o levares à morte? O sonho, Publius Ubonius, significa que ainda não criaste o teu Unicórnio e que precisas dele. Sem isto, és apenas um homem que dorme, embora fale dormindo. As circunstâncias propícias acolhem estas palavras do mercador frígio. Vê Publius Ubonius, num relance, a extensão dos seus enganos. Abandonando o hábito de sobre tudo informar-se e de fazer perguntas sobre tudo, concentra as suas energias em transpor para a vigília o Unicórnio do sonho. Uma manhã, ao despertar, o Unicórnio está deitado junto à cama, olhando-o. Pela última vez, a espiral desenhada sobre o quadrado mágico cruza a letra S. Um dos temas do livro, o que confia ao leitor, com a permissão de Jano, as chaves disponíveis sobre a organização do próprio livro, não será retomado. Essa organização, fique em definitivo esclarecido, não foi inventada pelo romancista. Imita, ponto por ponto, o longo poema místico, provavelmente escrito por um contemporâneo de Ubonius, que o consagra ao Unicórnio. O poema ficou inconcluso e o único exemplar existente, aliás numa versão grega, acha-se em Veneza, na biblioteca Marciana, com trezentos mil outros manuscritos, todos preciosos. Vê-se, aí, à maneira de Incipit, em belos caracteres latinos, agrupadas cinco a cinco, as letras do quadrado mágico; sobre elas, com os centros no N, apagada em alguns pontos mas bastante visível, uma espiral emcinábrio. O autor anônimo atribui a cada uma das oito diferentes letras um significado místico: A é a Cidade de Ouro; T, o Paraíso e a Unidade: aí o homem conhece a morte e é expulso; R, a palavra divina, nomeadora das coisas e ordenadora do caos; E, a peregrinação humana em busca da sabedoria; O, a natureza dupla (angélica e carnal) do homem; P, o equilíbrio interior e o equilíbrio dos planetas, sendo o eclipse total sua expressão perfeita por representar o alinhamento exato, embora temporário, de astros errantes; N, representa a comunhão dos homens e das coisas. Esses temas, no poema, são abordados ou retomados na ordem em que a espiral cinabrina toca as respectivas letras. No presente livro, só a organização daquele antigo poema é conservada. Esvai-se a grandiosidade dos temas. Resta, quando muito, um halo nostálgico da ambição que inspirou o seu modelo, mais de duas vezes milenar. E talvez a idéia, insistentemente repetida no velho manuscrito, de que o Unicórnio circula entre estas páginas.

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