UMA REDE NO AR - Os fios invisíveis da opressão em Avalovara, de Osman Lins

Leitura por rotas: são incursões no romance, mediadas pela leitura dos pesquisadores e concretizadas no dispositivo hipertextual criado. As rotas estruturam e tornam visíveis as articulações que se apresentam diluídas em fragmentos textuais do romance. Para a determinação das rotas, consideramos a possibilidade de navegação por rotas lexicais e unidades temáticas.

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Você está em Leitura por rotas » A Cisterna [T3]

Se passo horas na sombria umidade da cisterna e se lanço a rede até não poder mais, não é com apanhar algum dos poucos peixes aí prisioneiros: procuro fazer, deste ato ocioso e que executo mal, um eixo em torno de onde giram, nunca chegando a termo, minhas indagações sem cabeça. Só, sob a cobertura - estalam as folhas de zinco, nas noites mais quentes -, vou jogando a rede, colhendo-a e indagando. (Onde? O quê? Por quê?) De respostas, nem sinal.

Estou sem camisa, jogo no chão os sapatos e desfaço-me das calças. Ouço, como em outro ponto do tempo ou da memória, o vozerio e as risadas do Tesoureiro, da Gorda, de Leonor, de Augusto, de Mauro, de Cenira, de Cesarino, de Isabel, de Janira, de Lucíola, de Damião, de Eurílio, de Dagoberto, de Estêvão, a dispersão e o desacerto já instalados entre nós, sem que ninguém perceba o seu odor nas roupas, nos hálitos e atrás das portas. A decisão de saltar, mergulhar na água sombria e desprender a rede, empurra- me. Ordem enérgica ante a qual não ouso refletir. Mais uma vez puxo a rede, que não cede e enrijeço o corpo para o salto. É quando um quem, um que ou um ninguém me segura pelos rins e desarma o impulso iniciado. Está mergulhando para o Nada, Abel? Hein? Em pagamento de quê? O mar desfaz-se nas pedras. Mais uma vez a asa luminosa e leve do farol. Ajoelho-me, nu, à borda da cisterna. Vejo-me (como quem toma um revólver, faz girar o tambor (roleta russa: há no tambor uma bala), volta à boca do cano para a fronte, arrepende-se e aponta para longe, aperta o gatilho, ouve o tiro) vejo-me nas águas negras, entre os peixes, emaranhado na rede, tentando vir à tona sem poder. Quem ajunta esse peso aos chumbos da rede é a Morte. Penso isto e o sortilégio, se há, rompe-se - a rede se desprende e eu recolho-a. Um peixe se debate entre as malhas. Tateando, apanho-o. O corpo rabeando com aflição em meu punho. Atiro-o à água e me deito no cimento, exausto, como se na verdade houvesse mergulhado, lidado com o Não, escapado.

Vozes e sons de instrumentos musicais rolam pelo declive. A flauta de Eurílio, músico precoce, Leonor com o seu bandolim, os dedos infantis de Janira ou Isabel no piano meio rouco. Gorda e alva, minha mãe na cadeira de balanço, as solas dos sapatos já um pouco delgadas. Impressão de ouvir passos mortos afastando-se. Os passos da Leve! Acaso não serei o quem, Abel? O onde? O por quê? Não é a mim que procuras? Estendido ainda à beira da cisterna, inventando estas perguntas e percebendo esses passos, não me acodem expressões ou idéias de terror, de gratidão, de alívio. Volto-me de borco e um nome escorre, cuspe grosso, entre meus dentes cerrados: Cercília. Cercília? Ercília, talvez? Cecília? Nesta noite, Cecília e eu não nos amamos ainda. Ainda desconheço-a. Conheço, entretanto, uma Ercília. Tenho nove ou dez anos e alguém me impele na sua direção. De luto, sentada na sala, junto ao piano e envolvida num halo pesado de abandono, ela me olha séria. "É Ercília, a viúva do seu tio Abel. Ele morreu afogado. Lembra-se?" Beijo os dedos de Ercília, frios, com este mesmo cheiro de cisterna, limoso e úmido. Anda por onde? Não torna a visitar-nos, sua figura é esquecida, seu nome é esquecido. Meu tio Abel arrastado pela correnteza. Temos o mesmo nome, ele e eu.

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